Depois de dois singles promissores, finalmente chega o terceiro álbum dos xx. É tudo aquilo que podíamos esperar de uma banda que já nos deu dois álbuns tão belos mas que consegue ir mais além; com I See You, mostram-nos que ainda têm muito para dar.
Do mesmo modo que Paul Cézanne pintou a montanha Santa Vitória diversas vezes ao longo da sua vida, os xx voltam a falar connosco, na sua língua tão própria, sobre as coisas de sempre — amor, introspeção e amizade. No entanto, tal como o pintor pós-impressionista mostrava quadro após quadro, o olhar que têm sobre estes segmentos da experiência humana é diferente, é novo: são Romy Madley Croft, Oliver Sim e Jamie Smith (a.k.a. Jamie xx) em 2017. A evolução sonora que se ouve em I See You, terceiro álbum dos londrinos, é resultado da sua mudança enquanto pessoas e, consequentemente, enquanto músicos.
Os singles que precederam o lançamento deste novo álbum deixavam transparecer que vinha aí algo muito diferente. O primeiro, “On Hold”, foi uma surpresa por ter mostrado um novo universo sonoro dos xx. O sintetizador líquido e cristalino do início vai-nos embalando, com as vozes de Romy e Oliver a acompanhá-lo, até que um sample e uma batida se começam a ouvir, tornando-se cada vez menos difusos até ao drop — e, de repente, temos uma das bandas mais tímidas dos últimos anos a pôr-nos a dançar, com uma canção de partir-o-chão-da-discoteca tão orelhuda quanto entristecedora (afinal, é uma música sobre o fim de uma relação). E, se nesta faixa a arte de samplar é honrada com o corte de uma faixa do duo Hall & Oates, em “Say Something Loving”, segundo single de I See You, o processamento de um verso dos Alessi Brothers revela outro nível de mestria — não só Jamie muda o tom do sample, como a própria progressão de notas é alterada para encaixar nas demandas harmónicas da guitarra e das vozes.
Curiosamente é nestas duas faixas que a clássica dinâmica de cantar em diálogo ganha maior destaque, com os versos a encaixar uns nos outros tão perfeitamente como rodas dentadas no mecanismo de um relógio suíço. Desde xx (2009) que ouvimos Romy e Oliver a “falar” um com o outro desta maneira cúmplice e fazem-no com relativa facilidade e grande sucesso (são melhores amigos, nada iguala essa química),
Há três músicas neste álbum que indicam, muito claramente, algumas das sonoridades que influenciaram o processo criativo em I See You e que se ouvem aqui e ali ao longo do LP. A primeira é “Dangerous”, faixa que abre o álbum. Logo a seguir a uns sopros que parecem anunciar a chegada dos reis, surge um beat tão UK Garage que podia, sem problemas, substituir a linha rítmica de clássicos do género como “A London Thing” ou “Re-rewind (The Crowd Say Bo Selecta)“. Nada estranho, de resto: Jamie, mestre do sampler/MPC, já tinha professado o seu amor pelo género em In Colour ou nos 7 polegadas que o precederam. Depois, o início de “Lips” sugere o de uma faixa de trap ou de um hip-hop mais narcótico. Contudo, quando entra a batida e a voz de Romy (seguida pela de Oliver), a ambiência transfigura-se rapidamente num R&B futurista e muito sensual — o reverb na guitarra, a letra e a maneira como esta é cantada criam uma atmosfera misteriosa, que parece retratar uma dança promíscua numa discoteca escura e cheia de fumo. Por fim, “A Violent Noise” engana-nos ao fazer parecer que vem aí um tropical house solarengo — na verdade, o synth agressivo que se vai fazendo ouvir lembra a tecnho minimal de Andy Stott ou um Arca sob o efeito de calmantes.
Algo que os xx usam em I See You como nunca antes são crescendos. Já tinham surgido ocasionalmente na sua discografia em faixas como “Heart Skipped a Beat” ou “Night Time”, mas sempre contidos na bolha minimal que caracteriza a primeira fase da banda. Contudo, neste terceiro registo, surgem por diversas vezes — na poppy e tão dançável “I Dare You”, na declaração de amor/quase-balada “Brave for You”, onde uma bateria forte e agressiva (lembra o martelo-dos-deuses em Pornography, dos The Cure) reforça a carga emotiva da canção, e, ainda, em “Replica”.
“Replica” é, quanto a mim, a melhor faixa do álbum. A batida que lembra o trip-hop dos Massive Attack (“Black Milk” de Mezzanine vem à cabeça) e a guitarra em loop causam um efeito hipnótico que nunca antes se ouviu nos xx. Ao transe induzido por esses elementos, juntam-se outros – uma segunda guitarra, a voz de Oliver (com Romy a acompanhar em coro), pianos e sintetizadores – que criam uma paisagem sonora expansiva e belíssima, com uma produção tão celestial que faz todos os instrumentos ganhar cores vivas e quentes. O contraste do instrumental com a letra também faz parte da magia desta faixa: “Replica” conta-nos a história de alguém que tenta, desesperadamente, libertar-se de uma rotina autodestrutiva, mas que acaba por se ver nas mesmas situações dia após dia.
Entre tanta inovação sónica, há ainda, no terceiro álbum do trio londrino, espaço para reminiscências dos trabalhos passados. Duas faixas de I See You, pela sua proximidade com aquilo que se ouve em xx e Coexist (2012), ajudam a criar uma espécie de coerência estética na evolução do som, evitando que esta pareça forçada, que aconteceu porque tinha mesmo de ser. “Performance” é uma dessas canções. Esta é uma das faixas mais belas e, ao mesmo tempo, tristes e deprimentes que a banda alguma vez criou — daquelas que casam muito bem com um regresso desolador a casa, a chorar no comboio, depois do fim de uma relação de anos. Como canta Romy, antes do refrão: “When you saw me leaving / Did you think I had a place to go? / Since you stopped believing / I’ve had to put on my own show”.
Por sua vez, “Test Me” relembra “Our Song” (última faixa do segundo trabalho dos The xx), na medida em que se apresenta como uma carta entre amigos, entre Romy e Oliver. No entanto, “Test Me” toca num ponto que só uma amizade muito sólida permitiria (pelo menos, com a honestidade com que aqui isso é feito) — discussões. Nela, os cantores e amigos de infância desafiam-se mutuamente a aliviar um no outro aquilo que os consome: “Just take it out on me / It’s easier than saying what you mean / Test me, see if I break”. No fundo, retratam aquilo que é a marca distintiva de uma amizade forte: quem não aguenta os desabafos de um amigo, por mais agressivos e absurdos que possam parecer, não desempenha verdadeiramente o seu papel.
Depois de se saber dos problemas com álcool que atormentaram a vida de Oliver Sim nos últimos anos (que revelou beber como forma de atrasar a chegada da idade adulta), I See You ganha uma importância que vai para além da música que encerra: marca a sobriedade do cantor e baixista, mostra uma Romy mais confiante nas suas capacidades vocais e um Jamie xx a assumir a sua importância no trio, deixando de estar na sombra dos dois cantores. É um registo que marca a maturidade artística dos londrinos. É, de certa forma, o seu álbum “adulto” — não que os outros fossem imaturos ou infantis, pelo contrário. Mas é apenas a manifestação natural do seu crescimento. E ainda bem que este se reflete na sua música, que não se prenderam à fórmula dos dois primeiros registos e se deixaram evoluir.
No seguimento de Coexist, a banda sabia que, no álbum que viesse posteriormente a esse lançamento, teria de sair da sua zona de conforto, como contam em entrevista à Pitchfork. E, de facto, foi isso que fizeram — logo à primeira audição percebe-se que o minimalismo que pautou xx e o segundo registo do grupo se dissolveu em produções grandiosas e brilhantes, com ritmos ricos e complexos. O grande responsável por esta mudança é, claro está, Jamie xx. As participações de Romy e Oliver no álbum de estreia do produtor e o contacto com o seu processo artístico a solo fez com que, depois, enquanto trio, deixassem de parte a premissa que precedera a gravação dos dois primeiros LP da banda: a de que tudo o que gravassem deveria poder ser tocado ao vivo. A remoção desta autoimposição expandiu a palete dos The xx com a adição sons e texturas que antes não faziam parte do seu leque imediato de escolhas. Isto abriu-lhes horizontes para um novo nível de experimentação sónica e o resultado está à vista: à medida que os 40 minutos de I See You se vão desenrolando nos nossos ouvidos, pinta-se um quadro de muitos tons com cores fortes e variadas, mas, acima de tudo, coesas e aplicadas com muito bom gosto. Sabe bem começar o ano com algo tão belo, depois de um 2016 para esquecer.