Litte Simz também consegue agigantar-se a partir da lama.
Em 2019 escrevemos sobre GREY Area que era um dos grandes discos do ano e elogiávamos a acidez e contundência das canções mais duras como “Offence” e “Boss”. Em 2021 destacávamos a evolução e sentenciávamos: ” Apesar de, por vezes, ser introvertida, tímida, quietinha, Little Simz é enorme e criou um álbum gigante”. Falhámos ao não escrevermos sobre “NO THANK YOU”, mas não vamos repetir o mesmo erro com Lotus, o sexto disco de Simbiatu Ajikawo.
Comecemos por estabelecer os axiomas: Simbi é a rapper mais interessante dos últimos anos; não tem um único disco que seja um tiro ao lado; tem uma escrita afiada como poucos e uma musicalidade tremendamente camaleónica. Sigamos então para Lotus.
Há uma sombra que cobre este disco: o processo que Simz moveu contra Inflo, o seu produtor e amigo de infância e líder do grupo SAULT. E Inflo torna-se então o alvo a abater neste disco. E esse ataque começa logo na abertura do disco. “Thief” é um tema assombroso, com um baixo pesado e um riff de guitarra que soa ameaçador e hipnótico ao mesmo tempo, enquanto Little Simz aponta um dedo acusador com um tom sibilante. “Why do you steal? Why do you spill blood and then go hide? / (…) I’m lucky that I got out, now it’s a shame, though I really feel sorry for your wife”, ouvimos cantar. E lamentamos por adivinharmos que dificilmente voltarmos a ter uma colaboração entre a “wife” referida (Cleo Sol) e Simbi. E ao contário do que aconteceu com o beef do ano passado entre Kendrick e Drake, este ataque é mais doloroso porque é claramente dirigido a alguém que já foi próximo e até amado.
Mas o disco tem tantos momentos de agressividade quase punk como de contemplação a meio tempo, como a lindíssima “Peace” (com Miraa May e o maravilhoso Moses Sumney) ou a lânguida “Lonely”.
“Free” é uma canção com um beat mais relaxado e um coro lindíssimo, mas os versos de Simz parecem deslocados. E o tom satírico de “Young” assemelha-se no tom a uma “DENIAL IS A RIVER” de uma Doechii, mas menos conseguida.
Lotus fecha com “Blue”, que conta com um belíssimo refrão de Sampha, esse homem lindo e que só sabe tornar as canções melhores do que têm o direito de ser. “There’s a light at the end, carry on / You and I found the break to be strong”, assegura ele no refrão e é uma metáfora perfeita para a capa e título do disco.
A lótus é uma flor que, no budismo, simboliza a pureza espiritual. Um ser que cresce a partir lama e que desabrocha apesar das adversidades. Litte Simz também consegue agigantar-se a partir da lama. Namasté, Simbi, namasté.