Depois de dois dias cheios de concertos, chegávamos ao último dia do Lisb-On. Com menos artistas que nos outros dias, domingo acabou por se revelar o dia com maior número de festivaleiros e aquele em que decorreu o melhor concerto do festival.
Ao chegarmos, já Marcos Valle tocava há dez minutos. Atraso imperdoável, mas que o grande cantautor brasileiro desculpou tocando “Garra”, o seu fantástico hino de liberdade escrito durante os piores anos da ditadura militar (que, à semelhança de alguns dos seus colegas músicos – Chico Buarque e Caetano Veloso, por exemplo – prendeu Valle durante algum tempo) e que dá nome a um dos seus álbuns mais importantes. Depois seguiu para “Paraíba Não é Chicago” retirada de Vontade de Rever Você (1981), um registo já diferente do de Garra, ou não fosse um dos grandes colaboradores do LP Leon Ware, que trabalhou durante muito tempo com Marvin Gaye. Nesta faixa, Marcos e companhia – Patrícia Leny (segunda voz), Diogo (trompete), Renato Massa (bateria) e Johnny Copland (baixo) – ofereceram uma improvisação que provocou arrepios na espinha: primeiro, um interlúdio samba protagonizado pela bateria deixou tudo a dançar; de seguida, as teclas e o trompete tomaram conta do palco e, numa conversa aberta e sem atropelos, deixaram à vista o virtuosismo quer do trompetista quer de Marcos Valle (o homem ainda toca muito, mas muito mesmo). Algures durante a música seguinte – “Água de Côco” (de Contrasts, 2003) – um velho colega de estúdio de Valle e artista que tocara no sábado saiu para dançar um pouco e filmar o amigo: Ivan Conti, baterista dos Azymuth. Os aplausos e gritos imensos que se sucediam a cada música fizeram Marcos agradecer sempre imenso, mas nada como no final de “Samba de Verão” ou aos primeiros acordes de “Mentira (Chega de Mentira)” – estes festejos só foram superados após a performance magnífica e sem espinhas de “Parabéns” (que o cantautor agradeceu dando os parabéns ao público) e quando voltaram a palco para protagonizar o primeiro encore do festival para tocar a fantástica “Não Tem Nada, Não” a pedido de um fã. E foi assim, com muita festa e alegria, que passou (depressa demais) a hora e meia do concerto deste gigante da música brasileira.
Era muito difícil seguir um concerto como o de Marcos Valle e, com as expetativas agora postas no concerto dos Jungle que aí vinha, Max Graef, acompanhado pelo seu amigo Kickflip Mike, não conseguiu agarrar muito a atenção do público. É uma pena, já que é dos projetos de música eletrónica mais interessantes que passou pelo Lisb-On. Ainda assim, durante uma hora fizeram um set muito bom: desde um deep house mais jazzy (a lembrar Floating Points nas suas peças mais viradas para a pista de dança) a garage/2-step, o duo fez ouvir os teclados aquosos de Rivers of the Red Planet e encheu essas músicas de um novo fôlego e dinamismo, ao manipular delays, pitch, reverb e filtros de uma forma tão aleatória como ensaiada, mas que resultou sempre bem. Além disto, ainda houve tempo para ouvir “Arrow Root” de Metal Fingers aka MF DOOM ser brilhantemente utilizada como melodia de uma das faixas que Max Graef e Kickflip Mike mostraram durante a sua atuação.
O palco exibia um conjunto extraordinário de instrumentos; contudo, não se via um ser humano. Quando um dub cheio de graves irrompeu, a esperança de que aparecessem em palco aumentou e muitos foram os que ergueram as cabeças, curiosos, a ver quem aparecia. Mas o vazio permanecia. Outra música ouviu-se. E então, quando algo já começava parecer estar a correr mal, apareceram sete seres humanos a ocupar os seus lugares atrás dos instrumentos: vítimas da maior salva de palmas na entrada do palco, eram os Jungle que surgiam prontos para dar o maior/melhor espetáculo do Lisb-On. É certo que a sua reputação ao vivo os antecede e isso ajuda à loucura e histeria total; a isto junta-se o facto de serem o banda que mais gente foi para ver, os grandes cabeças de cartaz desta edição. Todo o público, do princípio ao fim do concerto, dançou, cantou, bateu palmas como se de um único ser, possuído pelo demónio dos Jungle, se tratasse.
“Platoon” foi a faixa com que a banda de Tom McFarland e Josh Lloyd-Watson abriu, a dar tudo, as hostes. Não que fosse preciso muito para conquistarem o público: bastou entrarem em palco. Contudo – e isto é algo de louvar numa banda tão jovem (só têm 3 anos, tempo que Josh agradeceu ao público ter tornado possível) -, não se penduram na sua reputação para dar os seus concertos; pelo contrário, os britânicos esforçam-se genuinamente por dar um grande espetáculo e são justamente recompensados com o amor e carinho do público, algo em que o português não foi nada forreta. Depois de “Julia” e “Crumbler”, houve o primeiro momento alto da noite: ouviu-se uma voz a dizer “Right on time…” e os gritos que se sucederam mal deixaram perceber o resto – era “The Heat” que provocava a primeira grande festa da noite. Depois, antes de”Accelerate”, Josh contava aos espectadores que era a segunda vez que estavam em Lisboa naquelas férias: durante a primeira tinham visto Portugal a derrotar a Polónia, no Euro. Acrescentou ainda “this song is about coming home, thank you for having us in yours”, numa noite em que os agradecimentos foram quase sempre uns energéticos “Obrigado Lisboa!”. Continuaram a apresentar o seu homónimo de estreia, lançado em 2014 na XL Recordings, com “Lemonade Lake” e “Son of a Gun”, na qual se assistiu ao primeiro clap-along espontâneo do festival. A seguir, com “Lucky I Got What I Want” algo que já dava para perceber desde o início: as canções dos Jungle, ao vivo, ganham uma força e dinamismo que as tornam experiências totalmente diferentes das de estúdio. Há coros, há (ainda) mais texturas e o trabalho do percussionista ajuda a salientar ainda mais as secções rítmicas das músicas, contribuindo tudo isto, juntamente com a boa disposição e energia incrível da banda, para versões ao vivo que são de tirar o fôlego a qualquer um. “Drops”, que veio depois, é o perfeito exemplo: a meio da canção, o falsete de Josh, quase sem instrumentação para acompanhar além de um teclado e uma batida minimais, dá lugar a um rugido e tudo o resto explode numa supernova de cores e sons, provocando uma catarse da maior beleza. A dupla de músicas que fechou o concerto revelou-se o segundo grande momento do espetáculo – “Busy Earnin'” e “Time” causaram a histeria total: não havia ninguém que não entoasse de pulmões cheios qualquer uma das duas, tudo batia palmas ao ritmo das faixas e todos dançavam como loucos. Um final apoteótico com tantas palmas que é impossível toda a gente na Avenida da Liberdade, no Parque Eduardo VII e no Marquês não ouvissem, salva que Josh, mais uma vez, agradeceu dizendo: “Thank you very much. You guys are fucking special, remember that yeah?”
Palavras não fazem justiça àquilo que é um concerto destes britânicos. Naquela hora e pouco tão curta, realizou-se aquele que foi, facilmente, um dos melhores concertos deste ano.
Gerd Janson fechou a noite com uma grande festa house, por vezes a ir mais ao acid da Haçienda outras a pisar terrenos do techno e a lembrar AFX aka Richard D. James. Durante o concerto de encerramento do festival ainda se ouviu samplada a faixa “Pleasure, Little Treasure” dos Depeche Mode.
Foi assim o terceiro e último dia do Lisb-On #Jardim Sonoro. Com mais uma edição de sucesso, esperamos que em 2017 o festival regresse e que o cartaz esteja bem forte, pelo menos tão ou mais rico que o deste ano. Com este festival, encerra também a temporada dos festivais de verão. Agora é hora de cortar as pulseiras acumuladas e regressar às aulas e/ou trabalho. Custa, mas já não falta muito para estarmos de volta à loucura de concertos, pessoas que não se calam mesmo quando tal é pedido, montar tendas, sobreposições, etc.: no fundo, a tudo aquilo a que os festivais já nos têm habituado, para o bem e para o mal.
Fotos: Beatriz Pinto