No dia 8 de Setembro de 2016, Valada do Ribatejo acordou com uma luz dourada e gentil que atravessava as folhas das árvores com paz e cor de Verão. Aos campistas chegados nos dias anteriores juntavam-se muitos outros que chegavam para o primeiro dia do festival à beira-rio.
O Reverence Festival Valada começaria oficialmente às 17h da tarde, com os 800 Gondomar. Provavelmente o concerto menos memorável do dia, foram cinquenta minutos de um rock de garagem que não aqueceu nem arrefeceu. Ainda assim, foi fofo ouvir uma banda a fazer esse tipo de rock em português.
Os Sun Mammuth também não foram inesquecíveis mas soube bem a dose ligeira de stoner de final de tarde, à qual já mais algumas pessoas assistiam. O passo ora abrandava ora acelerava e viam-se as primeiras cabeças a abanar do dia. Portugueses como a primeira banda, os mamutes solares não foram particularmente inventivos ou diferentes em relação ao género que tocam – assim como a banda que lhes antecedeu -, mas sempre deram um concerto mais cativante.
A banda seguinte, os Flavor Crystals, trouxe kraut e shoegaze em abundância, induzindo viagens que iam de Minneapolis, terra natal dos seus elementos até ao ponto mais distante no universo. Um rock espacial incrível e cheio de êxtase que acabou com uma motorik a soar a Neu! – se não era mesmo uma versão da banda alemã – com muita distorção.
Os The Sunflowers traziam colares de flores, girassóis e cabelos compridos para tentar aliciar o público, mas o seu ar presunçoso e a falta de baixo fazia-nos desejar o fim do concerto o mais rápido possível. Preferíamos que eles passassem menos tempo a referenciar o uso que fazem de drogas e mais a ouvir-se e a trabalhar na música que fazem. O fraco concerto terminou em melhor forma, com a canção “I Wanna Be Your Dog” (The Stooges) a ser acompanhada pelo baixista dos 800 Gondomar e a fazer o público cantar e vibrar com o baixo a preencher a lacuna que faltava no som da banda portuense.
A noite caía definitivamente e os Blaak Heat “rockavam” sons da Anatólia e do Afeganistão, uma beleza feita de distorção e arabescos, de transe serpentino, de alusões sonoras a uns Black Sabbath saídos do Médio Oriente. Um concerto forte e denso que nos abriu o apetite para o rock a sério que se começava a ouvir. E quem veio saciar esse apetite foram as três bandas seguintes.
Primeiro, os J. C. Satàn. Bravos, loucos e selvagens. Vocalista aos gritos no chão, guitarras no ar, uma baixista exímia na postura e execução. Um som de arrombar portões de castelos, um culto a qualquer coisa menos importante que o magnífico momento que se viveu ali. Mas já salivávamos com Riding Pânico, que compensavam a falta dos Chain and the Gang.
Makoto Yagyu, Fábio Jevelim, Shella e amigos mandaram a casa abaixo com “Dance Hall”, “E Se a Bela Fosse o Monstro” e outros orelhudos temas dos célebres Homem Elefante (2013) e Lady Cobra (2008). Os teclados magistrais de Shella, a bateria certeira de Miguel Abelaira, o baixo tenebroso de Yagyu e as três guitarras eléctricas produziam uma argamassa de éter explosivo que nos arrepiava os pavilhões auriculares sem dó.
Sem piedade viria John Dwyer e os seus Thee Oh Sees. Os dois bateristas inacreditavelmente coordenados (e um dos bombos coberto com um galo de Barcelos e a frase “I love Portugal”), o baixo escondido mas essencial e a guitarra de Dwyer, que fazia dela o que queria, levavam o público à loucura – e elevavam a poeira aos céus. Apontando a sua guitarra de vidro – a sua arma – para onde lhe apetecesse, com um acorde destruía a sanidade de todos os presentes – “Plastic Plant”, do último disco, foi uma das canções que mais ficaram na memória. Rock de garagem se fundia com rock psicadélico e o público com o pó que se levantava no primeiro moche a que assistíamos no festival. Um concerto memorável – que até excedeu o tempo previsto.
A afluência às tendas ia começando. O primeiro dia de festival acabara em beleza e do dia seguinte se esperavam muitas surpresas e o triplo das bandas. O corpo precisava de descanso e a noite despediu-se no breu do campismo com um até já.
Muitos ainda dormiam ao raiar do segundo dia do Reverence. Às 14 horas entravam em palco os Ossos D’Ouvido, que juntamente com os Twin Transistors, The Black Wizards e Miss Lava fizeram as primeiras vibrações do dia, abrindo caminho para a primeira banda a tocar no palco Sontronics.
Falamos de Pigs Pigs Pigs Pigs Pigs Pigs Pigs. Matt Batty, de tronco nu e forte presença em palco, bradava clamores ao céu acompanhado de um stoner denso e corpanzudo, sonicamente impecável.
A nostalgia veio a seguir, em folhas de LSD and The Search for God, no palco Rio. Shoegaze revivalista que prometia encher as medidas mas ficava pelo caminho. A parede de som que lhes ouvimos em estúdio não chegava até nós ao vivo, tendo a banda mais pose – nem mesmo nesse campo cativavam – em palco do que música. Ficamo-nos pelos (poucos) discos.
Silver Apples, no mesmo palco, foi voltar à época da experimentação sintética, à space age, à idade do Moog. Sequenciadores e sintetizadores interligavam-se numa orquestra electrónica em que ritmos e melodias se fundiam num só órgão que nos transportava pra outro lado. Circuitos de naves espaciais, sons alienígenas, o som da revolução electrónica.
Yawning Man rebentaram o palco Sontronics com belos temas trazidos de Palm Desert, California. Uma das bandas fundadoras da cena do desert rock, os Yawning Man traziam na bagagem as paisagens de Historical Graffiti (2016), uma guitarra esmeralda e beleza de sol posto, uma Fender Telecaster e um baixo Rickenbacker que passavam através de incontáveis pedais e amplificadores Orange, chegando até nós em forma do melhor rock escapista – do pós-rock ao rock psicadélico, do desert rock ao stoner – que se ouviu no festival até saírem do palco, já a noite caída.
Imediatamente antes das estrelas da noite, houve tempo para espreitar The Raveonettes, que fundiam um noise pop sussurrado com distorção e reverb de sobra à shoegaze, num concerto pouco entusiasmante, ainda que com alguns belos rasgos sonoros.
Pouca necessidade há em mencionar o nome de Anton Newcombe e os seus The Brian Jonestown Massacre, já que ocupavam o óbvio lugar de banda que toda a gente queria ver. Infelizmente, ainda que de uma noite de revisitação de clássicos se tratasse, a banda da cidade historicamente mais psicadélica dos EUA permaneceu sempre no mesmo registo, com o mesmo ritmo lento e os mesmos jeitos de guitarra a percorrerem a maioria das canções. Uma massa de som pouco variada que tinha em “Anemone” o seu estandarte, com todos os outros temas a soarem a versões dessa canção – provavelmente a mais conhecida – e a voz de Newcombe a mostrar-se gasta e frouxa.
Parece que o concerto dos A Place To Bury Strangers foi dos mais incríveis e intensos que se viveu no festival – diz quem o viu – mas o DJ set com curadoria da Kaleidoscope (no palco Indiegente) prendeu-nos, com sons que iam dos Goat aos Death Grips, passando pelos Tame Impala e muitos outros. Uma pausa bem necessária antes de um dos concertos mais exigentes da noite – e que, teoricamente, só acabaria ao nascer do Sol.
Os Ozric Tentacles foram quem ficou a cargo de gastar as últimas energias dos festivaleiros no segundo dia de festival. Previa-se que tocassem das três horas e meia da manhã até às seis, tendo a banda inglesa (compreensivelmente) acabado o espectáculo vinte minutos antes do previsto. Mesmo com uma fusão imparável de géneros, do rock progressivo ao trance psicadélico, não passou tempo suficiente para que o concerto tivesse o efeito pretendido, o de acabar com os primeiros raios de luz do dia. O céu permanecia escuro como breu e o público gritava por mais. “Incrível, tudo o que um after deve ser”, ouvia-se. Só faltou mesmo o dia chegar – a primeira luz apareceu apenas quando as tendas já tinham sido todas ocupadas.
O terceiro e último dia do Reverence foi feito de surpresas e decepções. Surpresa no concerto inacreditável dos Øresund Space Collective, que começou no sorriso contagiante de Dr. Space (Scott Heller) – “relações públicas” e responsável pelo barulho sintético que preenchia os improvisos de 15 a 20 minutos que a banda apresentou no festival ribatejano. Com apenas uma pausa no concerto inteiro, o concerto dos Øresund Space Collective fez-se de imensos elementos – só faltou um concerto de quatro ou cinco horas, como Dr. Space nos disse ser o normal para a banda. Terra, fogo, ar e água se manifestavam numa guitarra slide lisérgica e lacrimejante, nos riffs e solos delirantes do druida Nick (não lhe sabemos o apelido, só a careca, a barba, o também contagiante sorriso e as vestes verdes e compridas que trazia), nas electrónicas alienígenas de Heller, nos raios de luz que irradiavam dos instrumentos e nos traziam laivos de cor sinestésica e em tantas outras coisas. Uma viagem completa que só poderia ter sido melhor com menos calor e mais pôr-do-sol. Definitivamente uma das bandas e concertos que trouxemos na memória doce do fim do Verão em Valada.
Se às cinco da tarde já estávamos bem lá em cima, as horas seguintes foram sempre a descer. The Veldt prometiam não só pelo estatuto mítico meio enevoado mas também pelo aparato de palco (as guitarras e vestimentas exuberantes, pra sermos exactos). A promessa não passava disso e o shoegaze tempestuoso só chegou às nossas entranhas uma ou outra vez, a meio do concerto, deixando o resto do tempo muito a desejar.
The Cult of Dom Keller ainda nos prenderam à terra com um baixo gordo e um bem-vindo stoner mas ao fim de quinze minutos soava-nos tudo igual e pouco interessante. The Sisters Of Mercy foram pavorosos, escondidos numa névoa feita por máquinas de fumo, envoltos em batidas de MacBook e guitarras chatas. Ainda conseguimos ter força para aguentar até With The Dead, que valeu a pena pelo doom pestilento e impiedoso que nos trouxeram, pelos cabelos esvoaçantes no headbanging em “The Cross”, pelo comboio de distorção contida e fervente que nos abalroou do início ao fim.
A edição de 2016 do Reverence Festival Valada pode não ter sido a sua mais forte mas ainda assim trazemos de lá as melhores recordações. De alguns concertos ao ambiente, da qualidade do som à beleza e humildade do local. Todos os concertos tinham uma mistura e acústica quase perfeita, onde por mais barulhenta que fosse a banda se conseguiam ouvir os instrumentos individualmente e sem tímpanos a rebentar ou o corpo a vibrar – mas sempre de som cheio e ar preenchido -, uma clara diferença em relação aos festivais maiores que fazem uso de um volume ensurdecedor e de um aparato esmagador para impressionar, fugindo ao que realmente importa (a música). Abrimos um novo lugar no coração para o parque de merendas da bela vila de Valada do Ribatejo e desejamos que o tempo passe rápido para voltarmos a acordar com a luz de Setembro nas folhas das árvores, o vento uivando nelas, o lento acordar do campismo e os primeiros acordes do melhor rock que se faz pelo mundo a chegar-nos logo a seguir ao acordar. Até para o ano, Reverence. Até para o ano, Valada. Até para o ano, quiosque da Geninha.
P.S.: Só foi (bastante) lamentável a ausência dos prometidos autocarros que transportariam os campistas da vila à estação de comboios do Reguengo, no dia a seguir ao festival.
Fotos: Joana Raimundo