Regressemos a Kate Bush e à sua pop complicada mas deliciosa.
Foi no mês passado que o nome Kate Bush voltou aos cabeçalhos, por razões menos agradáveis: alegadamente, Paul Tollett, o homem por detrás do festival californiano Coachella, talvez mais célebre como paraíso da moda e da celebridade do que propriamente pela sua música, recusou abrir espaço para a musa britânica num dos seus palcos. Na verdade, o chumbo não foi tão feroz quanto isso, mas mais uma resposta vaga e ambígua quanto à sugestão de curar o primeiro concerto da cantora em solo americano: “ninguém iria compreender.”
Tollett talvez saiba mais do que deixa crer. Na verdade, pode ser complicado imaginar uma multidão de flores presas no cabelo e telemóvel com dados ligados fechados no pulso, que talvez ansiem mais por um Drake ou um Steve Aoki no maior palco do seu festival de coração a encantarem-se com a pop complicada que Kate Bush tem vindo a produzir nos últimos trinta e poucos anos. Não passe isto por um julgamento de valor; é difícil para quase todos compreender Kate Bush – até para quem daria tudo para a ver num palco perto de si esta primavera ou verão.
O que é pop complicada, afinal? A própria expressão parece um paradoxo (não é o encanto de toda a música pop a sua descomplicação, o seu sem-complexos e facilidade de entrar e sair dos ouvidos a uma velocidade encantadora?) A verdade é que a própria Kate Bush é, ela própria, um estranhíssimo e belo paradoxo. Faz música pop que não passa na rádio, não é ninguém (visto que muda de narrador das suas canções como quem muda de roupa) mas tem uma presença imponente e imediatamente reconhecível, tanto coloca a voz num agudo de criança (como no tema que a lançou para a ribalta, “Wuthering Heights”) como num grave sensual quando se faz de mulher. Quem é Kate Bush, afinal?
“Wuthering Heights”, da qual falámos ainda agora, foi a canção que meteu o seu nome na boca de toda a gente. Escrita pela mesma com 18 anos, sendo que tinha já escrito uma panóplia delas quando foi descoberta por David Gilmour numa casinha modesta no sudeste londrino, de cabelos no ar e mãos assentes no piano, adolescente calada cheia de músicas dentro de si. Em 1978, é lançada em conjunto com um videoclipe que deixa toda a gente de olhos colados no televisor a observar a jovem adulta a rodopiar sobre si mesma num vestido comprido, de olhos arregalados, aos pulos ao som de uma balada inspirada por um clássico da literatura inglesa. Chega ao topo das tabelas de vendas e Bush torna-se, assim, a primeiríssima mulher a ter uma canção escrita pela sua própria mão na primeira posição. O que é que é que se poderia seguir a uma estreia tão estrondosa?
Para quem começou no topo de montanha é difícil não escorregar. Bush nunca tombou totalmente, mas andou incerta ao sabor do vento com os álbuns que se seguiram, que nunca saborearam o sucesso tremendo do seu álbum de estreia; um hit aqui e ali, mas, maioritariamente, era a crítica que se encantava com a musa de cabelos compridos e performances elaboradas que uniam a música com o teatro e a dança como nunca nenhum artista tinha imaginado antes (talvez quem mais se aproximasse fosse outro gigante britânico – Bowie -, sendo que chegaram a partilhar um professor de mímica de modo a incorporar a arte nos seus concertos), e não o público. Cada álbum sabia a um passo mais próximo da obra-prima; Bush estava apenas a preparar-se.
1985. Num mundo de Madonnas e Whitney Houstons, o público começa a ficar com água na boca para mais um número da mestre da pop a saber a algo diferente. No ano anterior, ouvindo as suas preces, Bush recupera das vendas pouco satisfatórias do seu último trabalho, o abstrato The Dreaming, constrói um estúdio na parte de trás do quintal para trabalhar sossegada e a seu ritmo e, no final do verão seguinte, Hounds of Love, o disco que tratamos aqui hoje, chega finalmente ao mundo.
Hounds of Love pode não ser o mangum-opus de Bush, mas é definitivamente o álbum pela qual esta será recordada para a posteridade, será o álbum que guiará futuros ouvintes numa viagem através de outros trabalhos menos importantes, e é talvez o conjunto de canções que melhor servem de mapa para o complicado e maravilhoso mundo de Kate Bush. É pop que fica no ouvido mas que causa comichão, que não é tão imediato ou fácil como o resto, que se desdobra em camadas que por sua vez se abrem em portas para mundos diferentes do nosso.
Kate Bush abre o álbum com o que se torna imediatamente um dos seus momentos altos: a hipnótica, simultaneamente melancólica e energética “Running Up That Hill.” É inútil falar de Bush sem falar de tudo o que vem por arrasto, sejam elas as roupas, as capas, os palcos, os cenários; desta vez, é essencial puxar à conversa o videoclipe, que mostra Bush e o dançarino Michael Hervieu entregues a si próprios e a uma coreografia de cortar a respiração imaginada por Diane Grey; os movimentos de Bush e do parceiro, ao som da percussão energética e daquele memorável riff do sintetizador, são sensuais mas profundamente tristes; mostrando-nos que não é só a música que nos consegue levar ao arrepio.
“Running Up That Hill” tornou-se assim um dos maiores sucessos de Kate Bush até à data, mas não foi o único do álbum: os restantes singles, “Cloudbusting” e “Hounds of Love”, também são monumentos pop no seu direito e, com mais tempo, merecedores de um parágrafo próprio.
Talvez a maior surpresa venha mesmo a partir da marca da metade do longa-duração; pois, enquanto a primeira metade do álbum é uma coletânea de pop primorosa e estudada, a segunda metade é uma exploração conceptual de uma figura que flutua sozinha no mar à noite. O cenário abre com “And Dream Of Sheep”, na qual a voz delicada mas segura de Bush acompanha as pacientes teclas do piano, “let me be weak, let me sleep and dream of sheep”. A história prossegue naturalmente, prendendo o ouvinte como o narrador se prende à certeza da morte num mar revolto, com temas como a sombria “Under Ice” ou a exótica “Watching You Watching Me”, culminando na inconclusiva e estranhamente alegre “The Morning Fog”.
Em Hounds of Love, Bush mostra-nos como ela é, em todo o seu maravilhoso incompreensível: um álbum de pop irreverente e rebelde escondido num invólucro de canções cor-de-rosa com sabor a comercial, mas que esconde na sua lírica, produção, musicalidade e todo o universo de formas artísticas que Bush carrega nos braços com todo o trabalho que produz um significado muito maior e mais importante. Que nem o público de Coachella nem nós vamos alguma vez compreender por completo. Mas não é preciso perceber para gostar.