Julia Jacklin: o mundo pode ser dela e é fundamental reconhecer isso para evoluir.
Julia, 28 anos, australiana, já teve mais vezes medo na sua curta vida do que muitos homens têm em 60 pelo simples facto de ter nascido mulher. Em 1977, no disco Bicho, Caetano Veloso cantava sobre uma tigresa: “Com alguns homens foi feliz/ Com outros foi mulher”. O mano bahiano não precisou de ouvir Julia Jacklin para perceber que ganhou uma lotaria genética imaginária por nascer homem. Mas nem todos são tão iluminados quanto Caetano e é por isso é essencial ouvir Julia para perceber que este mundo continua a ser bastante porreiro para homens e lixado para mulheres. Está na hora de homens, rapazes e meninos perceberem o que é estar na pele do “segundo sexo”, como lhe chamou Simone de Beauvoir. E Crushing é um excelente ponto de partida para essa jornada pela importância das letras. Além de ser um disco carregado de boa música.
O primeiro impacto ocorre logo na canção de abertura: “Body”. Num ritmo dolente, Julia conta a história de um jovem delinquente que é muito mais puto do que criminoso. Um tipo que puxa ao de cima o pior dos outros e, em particular, da namorada. A única forma de mitigar o efeito tóxico daquele apêndice canceroso de companheiro é cortando os laços totalmente, decidir fugir, zarpar para longe. E apesar do significado catártico da viagem de carro em direcção a novos rumos que a canção oferece, nem tudo é assim tão simples, como canta Jacklin. Afinal, há todo um passado e um medo que nunca vão abandonar esta miúda que canta. O tal namorado tem fotografias dela nua, numa cama que não lhe pertence e isso constitui um problema.
E aqui entra o tema que Julia não quer deixar cair no esquecimento: o ainda existente medo de ser mulher numa sociedade contemporânea. Porque mesmo depois da conquista do direito ao voto e da liberdade laboral; décadas depois do desenvolvimento da pílula e da despenalização do aborto em muitos países, ninguém pode dizer que as mulheres já não precisam de ter medo. Basta olhar para os números assustadores de mulheres que continuam a ser brutalmente agredidas e mortas pelos companheiros. Ou os casos de violação que tantas vezes nem chegam a ser denunciados. Ou então abrir qualquer site pornográfico para encontrar – em destaque, inclusive – categorias onde se anuncia com letras garridas “revenge porn” ou “ex-girlfriend gives a blowjob”. Vídeos e fotografias íntimas que podem até ter sido captadas com mútuo consentimento, mas que são liberadas para o mundo apenas por despeito ao outro e esse outro é, em grande parte dos casos, uma mulher.
É o medo de ser exposta que assola Julia Jacklin em “Body” (“I remember early days/ when you took your camera/ Turned to me, 23/ Naked on your bed/ Looking straight at you/ Do you still have that photography? Would you use it to hurt me?“), mas não vale a pena pensar que a divulgação de fotografias íntimas é o único receio que pode assombra uma mulher no século XXI. Nada disso. Não é senão uma ínfima parte e nem é, talvez, das mais graves.
Passando às duas canções seguintes, “Head Alone” e “Pressure to Party”, Julia Jacklin explica o que é ser uma miúda quase a tornar-se adulta mas que está numa relação adolescente. Na segunda canção do disco, tenta exprimir o quão sufocante é estar por vezes numa relação em que a outra parte não respeita o espaço alheio e como é preciso por vezes insurgir-se e gritar: “I don’t want to be touched all the time/ I raise my body up to be mine (..:) You can love somebody without using your hands”.
Já em “Pressure to Party” canta-se a pressão que uma rapariga sente de ter de ultrapassar mais rápido uma relação do que o ex-namorado, nem que tenha de se safar um estranho completo numa festa. Ambas estas canções são acompanhadas de uma adrenalina crescente com a distorção da guitarra a ser aumentada e com a cantora a soltar mais a sua voz e energia na entrega. “Pressure to Party” é mesmo uma grande malha de rock and roll com guitarras arranhadas, um baixo bem ritmado e uma bateria oleada que fazem a cama para que Julia possa esganiçar a voz sem que esta se torne agressiva. Um portento de canção rock escrita no feminino (como as melhores têm sido nos últimos tempos).
Avancemos até à quarta canção de Crushing e, até ao momento, a melhor canção de 2019: “Don’t Know How to Keep Loving You”. Nada no tema surpreende: são três acordes de guitarra, um solo que acompanha a melodia da voz, uma bateria bem temperada e um baixo. Mas o que fica é o sentimento com que Julia canta esta triste balada. A forma como escavaca o coração para cantar aquelas letras: “Don’t know how to keep loving you/ Now that I know you so well”.
Ao longo dos cinco minutos que dura a canção, Julia irá perguntar-se o que poderá fazer para voltar a amar o namorado. Até que percebe que não sabe quem é sem a presença do outro e fica desamparada sem amor. É então que confessa os seus verdadeiros sentimentos: o problema não é não saber como continuar a gostar do namorado. O que lhe custa é querer continuar a amá-lo – “I just wanna keep loving you” solta já no fim da canção, depois de repetir dezenas de vezes “don’t know how to keep loving you”.
Como compositora, Julia Jacklin podia achar que um conjunto de canções com uma mensagem tão forte dispensava a qualidade musical, mas não é isso que fazem os bons compositores de canções e por isso não é isso que acontece com Crushing. Há grandes malhas, com guitarras distorcidas e ritmadas e explosões de energia, como em “Pressure to Party”, ou “You Were Right”. Há também baladas muitíssimo bem esgalhadas como “When the Family Flies In” ou “Comfort”. E no centro, a servir de cola às letras honestas e composições bem pensadas está Julia Jacklin, mais uma princesa do indie-rock que dá cartas, como Angel Olsen, Julien Baker ou Sharon Van Etten têm andado a fazer.
Mas o que é mais importante nunca esquecer – e que Crushing lembra a cada audição – é que o mundo é um sítio lixado. Que o digam milhões de crianças que tiveram o azar de nascer em países em guerra e onde a comida escassa. Que falem os que não têm dinheiro para viver no país que os deixou à sua sorte, ou aqueles que por serem diferentes são ostracizados e odiados. E até as mulheres que nasceram com dinheiro e num país ocidental, como adivinhamos que aconteceu a esta cantora australiana, podem testemunhar que não é fácil. Porque ser mulher continua a ser lixado e para isso basta ouvir o lamento final de “Body”.
“Well, I guess it’s just my life/ And it’s just my body”, desabafa Julia, como quem escreve num diário. “Não é assim tão mau se as fotografias do meu corpo chegarem à Internet. Afinal é este o meu destino como mulher. É só o meu corpo. É só a minha vida. É só o meu corpo. É só a minha vida…”. É assustador pensar que é normal usar o corpo de alguém para o assustar, para o menorizar. Mas é o mundo que há. É lixado.
Mas Julia Jacklin compôs um disco que vai ajudar a salvar esse mundo, um problema de cada vez. É só preciso ouvir Crushing e tentar perceber.