A vida de Johnny Cash confunde-se com a sua obra de forma algo incomum. Para alguém que cantava tantas músicas de outros – embora também compusesse, e bem – os temas das suas canções soavam sempre como se Cash narrasse as histórias que faziam a sua vida. Esse é um dos grandes poderes do artista que fez do country uma coisa cool – algo nada fácil para um género que foi abastardado por tudo e por todos, acabando por morrer às mãos dos famigerados Shanias Twains e Garth Brooks deste mundo.
Desde o início nos anos 50, ao grande sucesso dos anos 60, à resistência nos anos 70, às dúvidas e decadência dos anos 80, culminando no regresso à forma e ao prestígio no final do século, Johnny Cash sempre foi uma espécie de “reserva moral” da musica americana. Não apenas da música, aliás. Ele era uma das faces mais reconhecíveis da América: o homem duro mas sensível, o toxicodependente e alcoólico que se sentia culpado e buscava na Igreja a redenção, o mulherengo incorrigível e o apaixonado pela sua amada June. Tudo isto ilustrava Cash.
E a verdade é que, mesmo perante alguém com tantos públicos vícios, não faltaram americanos que, perante um dilema moral, se colocaram a seguinte questão: “o que faria Cash nesta situação”?, tal o respeito granjeado pelo homem de “Ring of Fire”.
O melhor de Cash está, curiosamente, no início da sua carreira, e no fim da mesma. O início do seu country – quando era colega de digressão de gente como Elvis Presley e Carl Perkins – marcado pelo seu som trademark de ‘chica-chica-boom’, imutável e estável como carris de comboio; e o fim quando, com a ajuda preciosa do produtor Rick Rubin – trouxe à luz a fabulosa série American Recordings, cujos seis volumes são um tratado de bom gosto, de carisma e qualidade.
Pelo meio, aparece este Out among the stars. Gravado em duas alturas diferentes, em 1981 e 1984, Cash não terá ficado satisfeito com o resultado, de tal forma que os temas trabalhados com o produtor Billy Sherrill acabaram por ficar por editar, guardados num qualquer baú, até agora.
Ouvindo os 13 temas que compõem este “novo” disco, e que são agora escutados pela primeira vez, não se entende bem o motivo pelo qual Cash terá decidido não avançar com o disco. Embora não esteja claro se foi esse o caso ou apenas ele se terá desinteressado e partido para outras paragens musicais, não mais se lembrando desse trabalho. A verdade é que estas músicas – das quais apenas duas são da autoria do próprio Cash – não estão abaixo do nível habitual do ‘man in black’ nos negros anos 80. Antes pelo contrário. A verdade é que Cash – como tanta gente – sofreu a bom sofrer nessa década, acabando por diluir o seu som em produções limpinhas que o descaracterizaram. Entre os discos a solo e as aventuras saudosistas com os Highwaymen (Cash, Kris Kristoferson, Waylon Jennings e Willie Nelson), os discos desses tempos são demasiado claros, demasiado soft, demasiado comerciais. Este Out among the stars fica, nesse ranking, entre os melhores discos de Cash dos anos 80, o que, admitamos, não é suficiente para o colocar entre os melhores discos de toda a sua carreira.
Seja como for, é mais uma prova da força interpretativa de Cash: o que quer que canta faz-nos estar lá, com ele, na estrada de que fala. Aqui, seja nas músicas que reparte com a refrescante voz da sua esposa June Carter Cash ou quando a sua é a única voz, o que temos é o artista contador de histórias, cheio de humor, matreirice cowboy, e ‘gravitas’ quando o tema o exige.
Mesmo em temas aparentemente menores, o peso do carisma de Cash está sempre presente, e este disco que temos em mãos não é excepção. Nos difíceis anos 80, ouvirmos Cash cantar “façam qualquer coisa mas não me peçam para pendurar os meus sapatos de rock n roll” – em “Rock n Roll Shoes” – é uma benção que, só por si, vale o disco.
Desconhece-se se Cash será mais uma vítima dos “ladrões de túmulos” que, como está a acontecer com Jimi Hendrix ou Michael Jackson, vêem discos seus serem editados muito depois da morte física do seu criador. O que sei é que, se mais discos como este forem dados ao mundo, não será isso que manchará o legado de Cash.
Ou que construirá esse legado para quem não o conhece já, também é um facto.