Paris 1919 é um monumento sonoro incontornável! Com mais de meia década de idade, o álbum continua brilhante, com a particular Luz da Cidade que lhe emprestou o título.
Está mais ou menos generalizada a ideia de que Paris 1919 é o melhor disco de John Cale em nome próprio. Não queremos concordar, nem sequer optar pela opinião oposta. Numa obra tão vasta e tão radicalmente distinta entre os discos que a compõem, talvez não faça muito sentido sermos tão taxativos, ao ponto de alinharmos com a (suposta) maioria. Independentemente de todas estas iniciais considerações, talvez já valesse a pena arriscar, se nos dispusermos a escolher Paris 1919 como o melhor disco de John Cale no formato mais tradicional das canções pop-rock, digamos assim. Tida em conta a restrição proposta, torna-se claro que o álbum lançado a 25 de fevereiro de 1973 é, seguramente, um dos eleitos à medalha de ouro. No entanto, e porque nestas coisas é sem dúvida mais confortável apresentar certas reticências do que pontos finais, fiquemos apenas com a constatação de que um álbum composto por nove temas de excelência será sempre de louvar, mesmo depois de passados cinquenta e um anos do seu nascimento. Paris 1919 ouve-se com um prazer imaculado. Nele não há resíduos ou impurezas que o tempo possa ter acentuado. É puro cristal, caleidoscópico, variado e certeiro. Assim sendo, vamos lá ouvir, por escrito, a pérola que aqui nos traz hoje.
“Child’s Christmas in Wales” é a melhor canção de Natal que Deus ao mundo deitou, mas é também o melhor tema que pouco (ou nada) tem a ver com a festividade que já se aproxima. Surrealista, a letra, mas com uma melodia irresistível. Perfeita! Talvez o entendimento para a estranheza dos versos cantados na faixa de abertura de Paris 1919 venha na canção seguinte (“Hanky Panky Nohow”), quando John Cale nos diz que “Nothing frightens me more / Than religion at my door”. No entanto, e pondo de parte esses pequenos pormenores, qualquer dos dois temas mencionados alinham a par dos de maior elegância e grandeza da obra do nosso bom galês. “The Endless Plain of Fortune” é pastoral e épica, ao mesmo tempo. Há nela um lamento, uma nostalgia que enobrece, um som de desejo que se anuncia e se desgasta, simultaneamente. Não conseguindo melhor explicação, fica esta, na esperança de que vos faça sentido. E o que dizer de “Andalucia”?, em toda a sua exuberância contida, conto de fadas sem brilhos de magia supérfluos. Tão bela, que dói. Livre e etérea (“Needing you, taking you / Keeping you, leaving you”), um sonho tornado real em letra e música. “Macbeth” traz a violência ritmada do rock e soa estranha, quando surge. Deveria, pensamos nós, que gostamos de ponderar sobre coisas assim, ser o primeiro tema do Lado B, embora finalize a primeira parte da rodela de vinil. Não é que haja problema nisso, claro, mas encaixar-se-ia melhor na minha cabeça e nos meus ouvidos. Vivo bem assim, no entanto. É “Paris 1919” que abre a outra metade de Paris 1919. E abre bem, pois então. Aquele crescendo de teclas e cordas iniciais confere ao tema algo que mais nenhum outro tem: uma estranheza melódica que se atenua, aos poucos e muito rapidamente, até se tornar muito cá de dentro. Quando John Cale canta “You’re a ghost, la la la la la la la la la”, é de crer que todos já estarão mais do que rendidos a essa icónica canção. “Graham Greene” é leve e poppy, com uma pitada de reggae, engraçada de cantar: “You’re having tea with Graham Green / In a colored costume of your choice” e por aí adiante. “Half Past France” faz regressar ao álbum uma maior solenidade e é dos mais belos temas de John Cale de sempre, na minha modesta opinião. Os versos são fantásticos, crus, quase cruéis. Que importa isso, uma vez que “People always bored me anyway”?! Finalmente, “Antarctica Starts Here”. Sussurrada, enigmática, os versos finais arrepiam-me até aos dias de hoje: “Her schoolhouse mind has windows now / Where handsome creatures come to watch / The anaesthetic wearing off / Antarctica starts here”. Uma aparente ideia de começo que, afinal, representa o fim do álbum.
Paris 1919 deve o seu título à Conferência de Paz realizada em Paris, pouco após o término da Primeira Guerra Mundial. Nela, as potências vencedoras vieram a estabelecer novos padrões diplomáticos, um mapa político de uma Europa diferente e desmilitarizada, sobretudo tendo em conta os países perdedores. Talvez por isso, quem sabe?, haja em Paris 1919 inúmeras referencias geográficas que já alguém, por certo, deverá ter enumerado e contabilizado. À cabeça, subitamente, surgem algumas, como sejam os exemplos de Paris, desde logo (e os Campos Elísios como lugar icónico da Cidade Luz), mas também França, (a região de Beaujolais, em particular), Gales, Andaluzia, Antártida, Noruega, Leeds, Dunquerque, Berlim, Chipping Sodbury, Japão, Sebastopol e Adrianápolis, localidade turca que perdeu o nome para Edirne. É provável que ainda me escape alguma. Este eventual cosmopolitismo confere uma graça especial a Paris 1919, o álbum que hoje nos apraz registar como um dos discos mais importantes da longa discografia de John Cale.