A impressão de que o mundo da música não é um espaço onde a justiça do reconhecimento público está sempre presente, talvez seja a razão principal e determinante destas linhas. Se, na verdade, o músico em questão tem algum reconhecimento artístico no seu país natal, também é certo que por terras lusas não deixa de ser um ilustre desconhecido. Surgiu, primeiramente, como membro integrante das iniciais formações da Nação Zumbi e do Mundo Livre S/A, sobretudo como percussionista. Depois, deixados para trás esses projetos, foi a sua vez de projetar o seu nome próprio. Decorria o ano de 1998, e um fantástico disco surgiu no Brasil como uma autêntica bomba nova (se por acaso leu “boa nova” em vez da expressão redigida em itálico, não emende a leitura, por ser também essa a ideia que queria fazer sentir), e Otto estava, assim, lançado como nome de artista. O disco deu pelo título de Samba Pra Burro. Foi com Samba Pra Burro, portanto, que tudo começou, e nele a eletrónica está nos poros de todos os minutos desse trabalho, como estão os batuques dos terreiros, as sínteses do mangue beat, drum and bass, e o samba eternamente brasileiro. Adoro o disco, como adoro a genialidade do título. Samba Pra Burro quer dizer o quê? Muito e bom samba (lembrando a expressão popular que evoca quantidade e excelência de alguma coisa), ou samba para aqueles que, como o próprio músico, não sabem ou não podem fazer samba à maneira antiga e tradicional? Eu opto pela junção de ambas as ideias, claramente. Samba Pra Burro está, na minha opinião, destinado a ser um clássico, um disco de rutura, uma obra fora dos trilhos. Canções como “Bob”, “Low”, “TV a Cabo / O Que Dá Lá É Lama”, “Distraída Pra Morte, “Café Preto”, “Ciranda de Maluco”, ou “Celular de Naná” são geniais, embora possam ser difíceis para ouvidos sem a devida dose de burrice auditiva.
O sucesso, se assim podemos dizer, de Samba Pra Burro foi tão interessante, que em 2000 surgiu o duplo álbum Changez Tout: Samba Pra Burro Dissecado, um disco de remisturas, sem novas composições autorais. No entanto, isso não fez desse lançamento um trabalho despiciendo. Artistas como Max de Castro, André Abujamra, DJ Patife, Rica Amabis, entre outros, deram corpo a Changez Tout (agora título de disco, mas também de uma das faixas de Samba Pra Burro, que ganha aqui verdadeiramente um novo sentido, em virtude de este ser um disco de misturas). Não é para ser ouvido todos os dias, mas há momentos muito bons, de enorme inspiração.
Depois, no ano seguinte, surge Condom Black. Tenho alguma dificuldade em falar de um disco que é para ser ouvido, não para ser falado. Eu explico: Otto é swing, batuque, candomblé dançante. Assim sendo, ouça-se e pronto! O pessoal da Trama (editora do disco e grupo que albergava a quase totalidade dos novos nomes da música brasileira) fez-se notar, principalmente com a presença desse génio chamado Max de Castro (os seus primeiros dois discos são incontornáveis), que com Apollo 9, Rica Amabis e outros que tais fizeram de Condom Black uma obra verdadeiramente notável. Há que perceber que Otto renovou o samba, juntando-lhe pitadas de música nordestina, canções de roda, eletrónica qb e muitas mais coisas dificilmente nomeáveis. “Anjo do Asfalto”, “Dias de Janeiro”, “Pelo Engarrafamento”, “Por Que”, “Street Cannabis Street”, e “Retratista”, por exemplo, nasceram aqui, mesmo sabendo que o seu criador usou condom na sua conceção.
Depois, em 2004, chegou o amor! Sem Gravidade foi um disco apaixonado, que uma simples equação pode revelar: Otto + Alessandra Negrini = Sem Gravidade. Há imagens da atriz no encarte do cd, imagens de Otto beijando-a, imagens da terra brasileira, e um azul celeste na capa, a que ninguém fica indiferente. Há ainda, na capa, dois pássaros, quase impercetíveis. Entre muitas e belas canções que o disco comporta, uma há que me espanta pela dolcíssima melodia: “Pra Quem Tá Quente”. Experimente ouvir essa canção e veja lá se os versos “Pra quem tá quente, cool / Pra quem não sente, sou mais um / Pra quem não pode morar lá / Pra quem não pode morar / Pra quem não pode mora” não são lindos, quando cantados. Sem Gravidade é um disco de pele, de corpo, de sexo, de vida. Excelentes assuntos, portanto, e uma obra igualmente reflexiva, nos seus intentos.
No ano seguinte, o primeiro (e soberbo) disco ao vivo da sua carreira ganha destaque. MTV Apresenta Otto tem direito a duplo formato cd e dvd, e é uma autêntica bomba sonora, e um dos melhores discos de música brasileira ao vivo que conheço. As suas 17 canções mostram o cuidado havido na escolha do repertório do músico, abrangendo todos os seus trabalhos anteriores. Os dois momentos iniciais (“Anjos do Asfalto” e “Lavanda”) lançam as coordenadas da festa imensa que todo o disco revela. A longa e frutuosa relação entre a MTV Brasil e bandas / músicos brasileiros tem neste disco um momento maior. Não me canso de ouvir essa descarga de energia que MTV Apresenta Otto representa. Canções magníficas como “Bob”, “Low”, “”Dias de Janeiro”, “Por Que”, “Pra Quem Tá Quente”, “Renault / Peugeot” e tantas outras fazem desse disco uma obra fundamental.
O disco seguinte – Certa Manhã Acordei de Sonhos Intranquilos (2009) – parece ter sido fortemente marcado pelo fim do relacionamento de vários anos que o músico pernambucano manteve com a atriz Alessandra Negrini. Se assim foi, que Otto me desculpe, mas ainda bem. O disco é denso, tenso, sombrio, com um ou outro tímido raio de luz em dolente preguiça. Mas belo, muito belo, mesmo assim. Tantas são as vezes que a dor faz crescer coisas belas, não é verdade? Este álbum é mais uma prova disso. O título do disco evoca as primeiras palavras do romance A Metamorfose, de Kafka. Haverá necessidade de explicações suplementares perante a evidência de tal escolha? Não me parece. Na verdade, Otto surgiu metamorfoseado, com força renovada, e fez desse trabalho uma obra incontornável. Quem nunca ouviu “Crua” (a letra, se autobiográfica, até arrepia), ou “O Leite” (com a participação de Céu), ou as belíssimas “6 Minutos”, e “Naquela Mesa” tem andado tão distraído que nem desculpa merece. Ainda vai a tempo. É só terminar de ler esta linha e procurar o disco na loja do costume (leia-se Fnac).
Três anos depois, Otto regressou com The Moon 1111. O disco começou por se inspirar no filme Fahrenheit 451, de François Truffaut. Depois, Otto juntou-lhe ideias cabalísticas, Pink Floyd, Fela Kuti, uma pitada de The Smiths, Depeche Mode e outros que tais, num ambiente sonoro que sabe a anos 50, 60, 70 e 80. Grande misturada? Nada disso, tratando-se de Otto. Otto não é de misturas. Otto é a mistura em pessoa, filho diretíssimo e moderno da Tropicália, embora seja de Pernambuco e não da Bahia. Recebido de maneira algo distante e pouco entusiasta por parte da generalidade da crítica brasileira, The Moon 1111 não merecia essa sorte. “Dia Claro”, “Ela Falava”, “Exu Parade”, “The Moon 1111” ou “Selvagens Olhos, Nego!” mostram precisamente o contrário. Gosto bastante do disco, pois nele voltamos a encontrar um genial compositor, sempre imprevisível, truculento, futurista e kitsch ao mesmo tempo. “Chique e brega” algumas vezes, mas sempre maravilhosamente bom.