Mort Garson eclipsou-se por detrás de um único disco de culto que desvenda uma história de amor duradoura com o mágico objeto de teclas brancas e pretas que veio a mudar para sempre o rumo da música pop e eletrónica. Mas por detrás da lenda, jaz um homem com um corpo de trabalho mais extenso do que os trinta minutos que a maior parte de nós dele conhece.
Mort Garson? Mother Earth’s Plantasia. A reação às duas palavras que fazem o nome do músico, compositor e arranjador canadiano é quase pavlov-iana: mas, aqui, em vez de ouvirmos um sino que nos deixa a salivar, ouvimos um disco que nos dá vontade de comprar trinta plantas em vaso para com elas ouvirmos em conjunto os doces sons do sintetizador de Garson. Mother Earth’s Plantasia, o esboço musical lançado discretamente em 1976, tem toda a pelagem típica que caracteriza tão facilmente um álbum de culto: os poucos vinis vendidos à época transformam-se agora em edições valiosíssimas, e, mesmo com múltiplas re-edições ano após ano (sendo a mais recente ainda do ano passado, pelas mãos da Great Thunder), o preço da edição original já ronda as centenas de dólares há uns anos. Nas redes, acumula fãs que pelas teias sonoras delicadas do Moog de Garson (com o qual se tornou sinónimo), que, mesmo sendo humanos e não plantas, o respiram com vigor. Mother Earth’s Plantasia parece-nos um disco que cai nos nossos colos e ouvidos meio por acaso, de fonte anónima cujo o mistério acumula interesse. Mas vale a pena regar continuamente o ouvido pelo restante catálogo do mestre canadiano, que elabora um dos mais completes roteiros do mágico universe do Moog.
Para conhecer Morton “Mort” S. Garson, nascido a 20 de julho de 1924 em New Burnswick, Canadá, é necessário antes de tudo familiarizarmo-nos com o seu mais fiel colaborador, o sintetizador Moog. A revolução foi projetada em 1964 por Robert Moog, homem diante da prolífera empresa musical Moog Music, que sonhou num piano múltiplas formas nas quais as suas teclas pretas e brancas se pudessem transformar de forma eletrónica e analógica, ampliando em direção ao infinito o que podia ser um teclado, que, graças à sua visão, era, agora, quase tudo.
Apesar da sua comercialização dar arranque em 1964, foi apenas três anos mais tarde que o Moog conheceu uma pista de gravação, pelos dedos de um certo Mort Garson que por ele criaria uma afinidade que duraria uma vida inteira. Depois dele, os Doors, os Monkees, os Byrds, Simon & Garfunkel: mas o selo de estreia pertenceria sempre a The Zodiac: Cosmic Sounds, uma das mais curiosas expedições musicais de Garson.
Antes de ser o primeiro homem a atrever-se a gravar um teclado que soasse a mil sons, Mort Garson reformou-se de uma infância pacata no gélido Canadá para um curso universitário na reputada Julliard, em Nova Iorque. Arranjou trabalho como pianista e arranjador para pagar a renda na cidade, antes de ser chamado para o exército pouco tempo antes da conclusão da segunda grande Guerra.
Regressado das trincheiras, transformou-se no homem dos mil fazeres dentro do estúdio, fazendo crescer uma certa reputação enquanto arranjador, orquestrador, pianista e maestro: assinou também canções, letras e melodias para outros – em 1957, “Dynamite”, para Brenda Lee, “Theme For A Dream”, em 1961, para Cliff Richards. O seu maior e mais duradouro sucesso atrás do papel e caneta deu-se em 1963, com o eterno hino de lounge “Our Day Will Come”, que já conheceu versões de Ruby & The Romantics, k.d. lang, Amy Winehouse e todo e qualquer agrupamento de jazz vocal que aquece salas comuns de hotéis de pessoas tristes que se preze. No entanto, faltava-lhe apenas preencher um último lugar dentro do estúdio: o de artista.
The Zodiac: Cosmic Sounds conseguiu a proeza de lhe apresentar duas estreias significativas: não apenas a sua, enquanto músico e dono da sua visão criativa, mas também enquanto primeiro dono de um álbum no qual se ouve um sintetizador Moog, imerso num caleidoscópio instrumental da era hippie. O disco, feito a pares com Alex Hassilev, mais um jovem produtor com olhos cravados no futuro, é o primeiro sintoma de um caso de delírio criativo agudo para Garson, cuja mente vê na música desculpas para se desdobrar nos conceitos mais mirambulantes – desta vez, um disco inteiro dedicado ao mundo astrológico (loucamente popular entre os hippies dos sessentas), com um poema sonoro dedicado a cada um dos signos que o compõe. Seria difícil conceber um mundo mais perfeito para deixar as possibilidades infinitas do novo lustroso sintetizador de Moog, que não as ricas paisagens sonoras de Garson, que moldam musicalidade à personalidade de cada Balança, Carneiro e Escorpião com convição suficiente para converter até os mais céticos em fiéis leitores do horóscopo.
Seguem-se a esta minhentas experiências, e a criatividade crónica de Garson, unida ao poder incontestável do Moog, vieram a produzir magníficas aventuras sónicas, tais como o místico e divertido Electronic Hair Pieces, de 1968 (uma leitura loucamente sintetizada das canções do mítico musical hippie lançado no ano anterior) e Wozard of Iz, mais uma adaptação – desta vez, uma paródia do clássico do cinema a preto-e-branco Wizard of Oz, de 1969 – uma viagem deliciosamente exagerada no seu psicadelismo que nos remete para um sonho que sabe a pesadelo ou vice-versa, mas que sabe bem ao acordar de qualquer das formas.
Até à sua morte (foi a insuficiência renal que o levou em 2008, aos oitenta e três anos) Garson nunca se desculpou com o que seria uma merecida reforma antecipada de uma vida difícil de artistas e as ideias nunca deixaram de chegar – fez tudo desde arranjos, produção, música para filmes, séries, outros músicos. No entanto, o que mais o sobrevive é um geral desconhecimento da sua pessoa e do seu imenso e riquíssimo catálogo, e um amor intenso mas, no final de contas, desinteressado, pelo seu único disco que emerge do pó dos tempos, Plantasia. Vá-se lá saber porque é que as plantas é que foram colar. Mas ainda bem que foram. Nem que Plantasia faça os ouvidos desabrocharem para todos os discos, fáceis e difíceis de encontrar, do mago eterno do Moog. Talvez tenhamos algo a aprender com as plantas às quais Garson dedica o seu mais célebre disco: a ouvir, simplesmente por ouvir, com a paciência de quem sabe ser um ser que só isso pode fazer.