Enquanto a maior parte das bandas surgem de uma vontade imensa de criar arte, as the Shaggs nasceram por via de uma profecia da qual nunca pediram para fazer parte. Foi assim que lançaram, em 1969, Philosophy of the World, um dos piores e melhores discos de sempre, tudo ao mesmo tempo.
Em 1969, quatro irmãs sem qualquer experiência musical ou sequer vontade de tocar e cantar viram-se meio que obrigadas a lançar um disco indiscutivelmente terrível, que dez anos depois entusiasmava Zappa ao ponto deste as avaliar como uma banda “melhor do que os Beatles”, e mais tarde cativava Cobain ao ponto deste considerar Philosophy of the World o seu quinto disco favorito de todo o sempre. A história das Shaggs parece uma caricatura perfeita para explicar o estranho planeta da chamada outsider music. Só que não é, porque às vezes o mundo real é mais bizarro do que a própria ficção.
Então, reza a lenda: certo dia, numa das suas frequentes sessões de leitura da sina, a mãe de um certo Austin Wiggins, nascido e criado em New Hampshire, aprendeu da cigana quatro previsões fundamentais para os próximos anos da sua vida: primeiro, que o seu filho viria a casar-se com uma mulher loira; segundo, que ela lhe daria dois netos rapazes; terceiro, que, depois da sua morte, lhe daria mais quatro rebentos, desta vez todas raparigas; e que estas viriam, mais tarde, a formar uma banda que atingiria o sucesso mundial. Entusiasmada, transmitiu o prognóstico ao filho, que, inicialmente suspeito, logo viu as cartas a caírem certeiras no baralho adivinhado: casou-se com a tal mulher loira, nasceram os tais dois rapazes, a mãe morreu-lhe, e, logo a seguir, vieram quatro meninas. Embriagado com a missão de fazer culminar a previsão acertada numa realidade, logo meteu mãos à obra para concluir a profecia. Dot, Betty, Helen e Rachel cedo saíram da escola e despediram-se à força da rotina de criancice pacata para se transformarem em tristes canais para a loucura de um progenitor cego por um destino adivinhado para ele e para elas.
Austin Wiggins, pai e mais tarde manager implacável, colocou-lhes nas pequenas mãos instrumentos musicais e subordinou-as a uma intensa rotina de aulas e ensaios que não prometiam materializar-se em muita coisa: não só o jeito era uma coisa que faltava a todas e cada uma das irmãs Wiggins no que tocava em acertar nas notas e compassos, mas também o desinteresse envenenava qualquer chance de melhoria, sendo que dentro das suas cabeças de vento sonhadoras preferiam pensar em jogar à bola e passear os livros a aprender escalas e acordes. Aliás, a música era uma coisa que nunca havia assumido um plano secundário, quanto mais principal, na residência Wiggins, austera e católica e pouco dada às artes de qualquer espécie, pelo qual as possíveis referências musicais das pré e adolescentes eram escassas e pouco estudadas. A música era disciplina, trabalho, uma profissão imposta pela previsão de uma desconhecida que nunca as conhecera. Wiggins era obcecado, ao ponto de obrigar as quatro irmãs a passar uma porção considerável do tempo dedicado ao seu valioso projeto não a tocar mas a saltar à corda e a exercitar-se, visto que o sonho de as ver um dia no Ed Sullivan Show intercalava-se inexoravelmente com a necessidade de as ver magras e bem-parecidas (visto que a possibilidade do sucesso chegar pela música boa aparentava-se uma realidade progressivamente mais distante).
Em meados do final da década de sessenta, Austin Wiggins tomou uma decisão concreta: o tempo de cozedura estalara e as quatro irmãs estavam prontas para entrar num estúdio e transformar todos aqueles anos de trabalho no sucesso prometido. Barafustando, as raparigas foram arrastadas pelas orelhas para Massachusetts, onde o pai fizera um dispendioso negócio com a pequena editora Third World Recordings, que concordara em gravar e editar o desastre.
Philosophy of the World é o resultado de todo este esforço, que pertence mais a Austin Wiggins do que às próprias Shaggs, mesmo sendo elas as não tão orgulhosas autoras de todas as canções (se é que lhes podemos chamar assim). Lançado originalmente em 1969, é um dos discos mais intragáveis e fascinantes que o ser humano pode encontrar. Tal qual um sangrento acidente de carro pelo qual passamos de rompante na auto-estrada, é impossível desviar o olhar, mesmo que este se contorça num horror masoquista perante aquilo que não conseguimos crer ver mas que queremos. Com Dot e Betty nas vozes e guitarras, que colidem nas melodias gémeas de voz e cordas esganiçadas, Helen na acidentalmente polirrítmica bateria e Rachel no desajeitado baixo, Philosophy of the World é um disco impossível de ouvir e ainda mais difícil de ignorar: uma catástrofe sónica e lírica que parece ter sido criada em moldes de pesquisa científica num laboratório de circunstâncias milaborantes.
Ele que prometia convicto a quem o ouvisse que o disco de estreia das suas lindas filhas venderia milhares de cópias, Austin Wiggins acabou por comprar envergonhado quase todas as novecentas que Philosophy of the World gerou. Volveram-se os anos e Dot, Betty, Helen e Rachel continuaram acorrentadas à loucura do pai, tocando sucessivos e embaraçosos concertos na sua pequena cidade, até que, em 1975, Austin Wiggins caiu morto de repente, vítima de um fatídico ataque cardíaco. As The Shaggs evaporaram-se de imediato. Porque, ao contrário de noventa e nove por cento das bandas jamais criadas, nunca tinham querido existir.
E quem poderia ter sido, para além de Zappa, a apaixonar-se pelas suas vozes desafinadas, guitarras trapalhonas e bateria sem lei? No início da década de setenta, foi ele que trouxe consigo uma cassete da banda de de New Hampshire para o Dr. Dementio Show, para o qual era convidado frequentemente para debitar sobre o novo bicho raro da semana. Desfez-se em elogios genuínos à inaudível música das moças, das quais sobreviveu para sempre uma frase que vive colada ao legado pequeno e enorme das the Shaggs: “são melhores do que os Beatles”, garantiu Zappa com toda a seriedade de alguém que sabe que está a dizer algo que não devia.
Já no fechar da década, Terry Adams e Tom Ardolino, membros fundadores dos NRBQ, viajavam para a pequena cidade onde Dot, Betty, Hellen e Rachel haviam dado continuidade às suas vidas de pessoa normal na esperança de as encontrar para conseguir a sua autorização para re editarem aquele disco que não lhes deixava pregar olho. Encontraram-nas casadas, mães de família, funcionárias do público e do privado, simples mulheres anónimas que tentavam chocalhar da memória os seus estranhos anos de artistas escravas. Foi-lhes dada autorização para re editar Philosophy of the World, exatamente dez anos depois do seu lançamento original. A Rolling Stone apelidou o acontecimento de “o comeback do ano”.
Anos de tributos ardentes e compilações cuidadas mais tarde, as The Shaggs fazem parte da história material da outsider music quer queiram, quer não: Philosophy of the World é daqueles discos que não se discute em cinco nem em dez minutos, e que, ao contrário da máxima pessoana, não se entranha, só se estranha e volta-se a estranhar. Mas depois de alguns minutos de tortura, surge uma luzinha resplandecente ao fundo do túnel: uma estranha beleza perversa em ouvir o fantasmagórico produto de quatro pessoas que não fazem a menor ideia do que estão a fazer. É um “The Room” do Tommy Wiseau versão áudio, ainda para mais motivado por uma profecia imposta a quem o fez que torna ainda mais delicado explicar porque é que gostamos dele, se é que gostamos sequer. E ilustra na perfeição o dilema eterno de muito do que constitui a chamada outsider music: isto é autêntico estrume musical ou é um artefato artístico precioso que deve ser estudado ao microscópio numa tentativa inevitavelmente falhada de o compreender? Tudo isto são questões pertinentes cuja resposta se pode prender com um resoluto “ambos”, mas, no fundo, Philosophy of the World continua a sobreviver inexplicavelmente ao sabor dos anos porque é um disco completamente único no seu conceito e conteúdo, para o melhor e para o pior. E ao menos ajuda-nos a meter os neurónios a fazer algum exercício – mesmo que nos queime alguns pelo caminho.