Midori Takada apresentou-se discretamente em Braga, Espinho e Lisboa no mês passado, na companhia das suas marimbas e bongos de estimação para tocar a música que sempre sonhara tocar para alguém. Mas, em 1983, quando lançou Through the Looking Glass, ninguém quis saber. 35 anos depois, com um empurrão da internet, tornou-se um dos maiores álbuns de culto do seu género, acarinhado por internautas e melómanos por todo o mundo.
Em 1983, Midori Takada lançou o seu disco de estreia, Through the Looking Glass, um esdrúxulo poema sonoro composto por quatro capítulos nos quais as flautas, os sintetizadores e os bongos se encontram numa estranha e pacífica dança de minimalismo sereno. Ninguém o escutou e quem o ouviu acabou confuso e sem saber a que prateleira o devolver após a audição. Acabou por ser arrumado à pressa debaixo da placa de “Música Clássica Contemporânea”, desaparecendo por detrás de gigantes como John Cage e Philip Glass, quando, na verdade, talvez merecesse um lugar cativo em mais do que uma estante ao mesmo tempo. O mundo inteiro esqueceu-se de Through the Looking Glass até um dia em que, a Internet, santa padroeira de todos aqueles que ainda julgam inocentemente que uma vez ignorado, para sempre ignorado, o veio dar a mão e salvá-lo das catacumbas de pó dos cantos esquecidos das estantes. No mês passado, Takada aterrou em Portugal com as suas teclas e tambores para o dar a conhecer e a reconhecer a Braga, Lisboa e Espinho, 35 anos depois. Esta é a sua história.
Takada, nascida a 2 de dezembro de 1951 em Tóquio, foi educada na arte do ritmo, conseguindo no final da década de setenta integrar a prestigiada Orquestra Filarmónica de Berlim. Mas logo começou a trair Beethoven com Reich e Riley, apaixonando-se pelo seu minimalismo noturno que transformava silêncios em abismos e sussurros de teclas e cordas em orações absolutas. E tal como Reich e Riley, apaixonou-se por via deles pelos ritmos quentes e serpenteantes do distante continente africano, berço do mundo e da música. “As pessoas dizem que é música pobre, mas, com muito pouco material, produzem sons ricos apenas usando os corpos e as mãos” explicou, anos mais tarde, em entrevista ao New York Times. E foi disto que fez a sua bandeira: transformar música na sua forma mais simples numa experiência verdadeiramente alucinante.
Ainda enquanto percursionista clássica, entregou-se a corpo e alma à sua missão, e, incapaz de descobrir mais sobre música africana no Japão (a literature e o material eram escassos), devorou todas as gravações de som capturado desde a Tanzânia ao Zimbabué, por mais rudimentares que fossem. Estudou com o regime de uma aluna de vinte, escutando atentamente as cassetes e vinis, transcrevendo os ritmos que lhe chegavam de uma terra que, de tão longe, lhe devia parecer inventada, transformava-os em matéria tangível, aprendendo-os e treinando-os. “Mudou o meu corpo”, afirma.
Ainda no Japão, travou conhecimento com mais dois experientes e curiosos percurssionistas, Junko Arase e Yoji Sadanari, e juntos formaram o Mkwaju Ensemble, no qual ensaiou a fusão de música africana, asiática e minimalista num só. Mas dois discos depois (Ki-Motion, e Mkwaju, ambos lançados em 1981), chegara a hora de se estrear finalmente a sós com o seu sonho.
Through the Looking Glass foi lançado em 1983. O álbum de quarenta e poucos minutos vê Takada a explorar, que nem Cristovão Colombo sonoro, o minimalismo soturno de Cage e Reich, os seus mestres minimais, e a plasticidade brincalhona das teclas de madeira africanas, resultando num agradável choque cultural e temporal que se materializa numa curta viagem através do meio dos sonhos. Tocou e gravou o disco inteiro sozinha ao longo de dois dias. O nome, obviamente, foi pescado do também ilusório Alice no País das Maravilhas, obra magna do fabulista britânico Charles Lutwidge Dodgson, mais conhecido pelo seu pseudónimo Lewis Caroll, publicada no século dezanove. Para o desconhecimento de muitos, Dogson era, além de escritor, matemático, e, intencionalmente ou não, a apresentação do trabalho de Takada acaba por refletir um cuidado que associamos à ciência dos números: numa tentativa de despir o álbum de qualquer pretensão a um despojo intelectual ou sentimental, organizou cuidadosamente cada sequência melódica num sistema lógico com a precisão da engenharia de um relógio suíço, deixando a música existir sem o toque sujo da intenção emocional humana: “é por isso que lhe dei o nome de Through the Looking Glass: o reflexo no espelho mostra-me algo, mas não quis satisfazer isso. Queria, por outro lado, forçar o discernimento do meu verdadeiro eu que está para além do espelho.”
Through the Looking Glass pode ser difícil de teorizar, mas não é difícil de ouvir: os seus quatro capítulos composicionais tombam uns nos outros com a leveza de uma brisa que faz tintilhar o espanta espíritos na varanda vizinha. Os quarenta minutos prosseguem com um vagar tranquilo mas que acaba rapidamente sem por eles darmos conta, bongo a bongo, marimba a marimba. Não admira que, o vídeo que possibilita a sua escuta para a grande maior parte dos comuns humanos, uma gravação direta do cobiçado (já lá vamos) vinil enviada por um anónimo qualquer, recomende em letras garrafais: “perfeito para MEDITAÇÃO”. Na verdade, é um disco perfeito para tudo, que enche os silêncios que já não suportamos da vida quotidiana com uma banda-sonora que dá alguma cor aos mais simples atos. E, à excepção do último capítulo, aptamente entitulado “Catastrophe”, no qual o crescente rufar dos tambores nos dá a sensação que despertámos sem querer um monstro adormecido, vai simplesmente acontecendo no fundo, no melhor dos sentidos.
No entanto, em 1983, ninguém soube muito bem para o que servia ou o que era, nem sequer a sua própria editora, a RCA, que não conseguiu perceber a que portas tinha de bater para o vender. Sendo assim, vestiram-lhe o largo rótulo de “Música Clássica Contemporânea”. Como muitos do seu género, não vendeu muito. Mas também não virou cabeças. Não chamou ouvidos. “O minimalismo não era muito compreendido pelos fãs de música”, confessa ainda hoje. Diz-se ter sido incompreendida. O seu magnífico esforço e sacrifício para gravar o disco da sua vida, completamente ignorado. Mas não seria para durar.
Takada não regressou tão cedo aos álbuns, mas continuou de baquetas na mão, a única coisa que alguma vez soubera fazer, dedicando-se a concertos em orquestra e a solo, enquanto compunha música para teatro. Gravou mais um disco, em 1999, Tree of Life, um último anexo a uma missão já falhada. Enquanto isso, longe de si, Through the Looking Glass começava a renascer, empurrado pelo simpático estatuto de culto que tinha vindo a ganhar longe dos holofotes. A internet, como sempre, foi generosa em semeá-lo por todo o terreno. O sempre misterioso alegorítimo do youtube tomou conta da rega, e começou a ser cada vez mais comum o simples internauta em busca de ambient minimal dar de caras com o mesmo vídeo, uma gravação do vinil de Takada disponibilizada por um zé niguém sortudo, e a sua mística minimal foi entrando em cada vez mais casas. O mundo abrira enfim os portões a Through the Looking Glass, e Takada foi finalmente convidada a entrar sem mais perguntas.
Em 2017, o telefonema com o qual sonhara a vida toda: enquanto o preço da edição original disparava para valores de leilão, a editora sueca We Release Whatever The Fuck We Want pedia-lhe para re-editar Through the Looking Glass, para fãs desejosos de o acarinhar nas suas casas sem terem de vender os dois rins para o comprar. Takada consentiu. É difícil imaginar-lhe um sorriso na única cara que lhe conhecemos – pousa para todas as fotografias com a expressão fechada e rígida das professoras exigentes, olhos duros e cabelo curto impecavelmente cortado – mas é fácil imaginar a sua felicidade ao finalmente entregar o seu precioso rebento a donos gentis e compreensivos.
E agora, 2018: Through the Looking Glass ameaça o crescimento contínuo (o vídeo original que o catapultou para a via pública foi entretanto apagado, mas o seu substituto, carregado para o site em finais do ano passado, já arrecada umas simpáticas centenas de milhares de visualizações) e à própria Takada – ou senhora Takada, visto que já conta com idade suficiente para ser assim chamada, acabada de fazer 67 anos – foi dada a chance de poder viajar por todo o mundo, o nosso pequeno país incluído, apresentando a sua querida obra-prima de estranho minimalismo em salas de concertos por todos os cantos que lhe dêm espaço para a sua família esquisita de teclas e tambores. E pensar tudo isto surgiu da terra mágica de vídeos de gatinhos e pornografia chamada internet.
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