Uma hora e meia de partilha de histórias pessoais, trágico-cómicas (como a vida é, não é verdade?), com uma doçura transversal.
Gina Birch, ícone do punk rock inglês, entra em palco como quem atravessa décadas com uma só frase: “Comecei a tocar música nos anos 70, quando o punk rock veio para Londres”. E realmente, ali estava ela — uma punk rocker a sério, cofundadora das lendárias The Raincoats, artista gigante que parece multiplicar-se entre cinema, pintura e música.
Os óculos de sol colocados durante quase todo o concerto (porra, que estilo!) poderiam funcionar como uma barreira entre nós e a artista, mas Gina Birch apresentou-se assertiva, a segurar a sua guitarra, acompanhada de um amplificador e um computador que dispara vídeos estilo videoclips caseiros, featuring amigos e paisagens do dia-a-dia da artista, para uma tela atrás de si.
Dona de uma voz desgarrada, intensa, cheia de falhas lindas, rapidamente agarra o público, com uma intensidade crescente. Em “Rage”, um vídeo projetado atrás dela acompanha cada grito, visceral e certeiro. Entre músicas, ri, conversa, mostra uma personalidade amável e divertida, feminista, claro, e totalmente acessível. Em “Trouble”, pede ao público para cantar “we’re here to cause trouble” enquanto no ecrã surgem nomes de mulheres históricas, o que ela chamou, de forma irónica, “mulheres problemáticas”. Foi uma primeira parte interessante, que mostrou e pediu ritmo à sala, que aplaudiu com entusiasmo o fim desta parte.
Entretanto, a sala do Teatro Tivoli estava cheia para receber Devendra Banhart no seu derradeiro concerto da primeira parte da Más Solo Tour pela Europa. Já tinha passado por Braga, no dia anterior, seguindo em poucos dias para o México e América Latina.
Ouve-se alguém dizer “bienvenido, Devendra” enquanto ele surge, tímido, e se ajeita numa cadeira no centro do palco. Está sozinho, apenas com guitarra, microfone e uma vela acesa. Ao contrário de Birch, Devendra Banhart apresenta-se despido de elementos e como que nos convida a respirar fundo e entrar, com pezinhos de lã, nesta noite especial, com uma proximidade envolvente.
Acena com suavidade e começa a cantar com a sua maravilhosa voz delicada, sem ser excessivamente delicodoce. Mais tarde explica-nos que podemos pedir-lhe músicas, tipo discos-pedidos, ou simplesmente ficar em silêncio. Partilha que esta tour tem sido um espaço de reflexão, de tocar canções de há 20 anos e tentar regressar emocionalmente a quem era quando as escreveu. “Não sei… ainda não sei [quem sou]”. Vai tocando por ordem cronológica, seguindo o fio da sua própria vida.
Diz que é tímido, e acreditamos. Conta histórias das suas músicas, partilha connosco como se fôssemos amigos chegados, fala com tentativas de sotaque português (soltando várias gargalhadas colectivas). É falador, mas nunca demais: abre o coração com simplicidade.
A certa altura, Devendra Banhart convida Gina Birch de volta ao palco para cantarem uma música das Cocteau Twins. A cumplicidade é evidente. Um dos momentos mais engraçados, e que revela esta cumplicidade entre público e Devendra, é quando afirma, com um ar bastante solene: “Não mantenham as vossas bexigas reféns. Go piss!”.
Devendra foi sincero, o reportório passou por “Little Yellow Spider”, “Quédate Luna”, “Angelika”, uma cover deliciosa de “Make It Easy on Yourself” de Burt Bacharach, “Never Seen Such Good Things”, “Carolina”, entre outras.
O concerto foi pautado por canções bonitas, na sua maioria em formato acústico, até que, já no fim, chamou um baterista para cerca de dez segundos de percussão intensiva (um piscar de olhos divertido) e encerrou o concerto. Mas, para bem de todos, ainda embalados nesta bonita noite, tivemos direito a um pequeno encore.
Tal como se fosse um pequeno artista no início de carreira, falou-nos no merch que havia disponível. Sacou de uma t-shirt (“Uso como pijama”) e anunciou com orgulho: “Vêem? É muito soft. Não se vai rasgar como esta, prometo”. Este pequeno momento divertido ilustrou bem o que foi o concerto: uma hora e meia de partilha de histórias pessoais, trágico-cómicas (como a vida é, não é verdade?), com uma doçura transversal.
Foi um concerto onde o punk encontrou a ternura, e onde Gina Birch e Devendra Banhart nos deixaram entrar, por umas horas, na intimidade das suas vidas, tão diferentes, tão cúmplices, tão humanas.
Fotografias: Hugo Amaral























