A 7 de Agosto, David C. Berman tomou conta das redes sociais da Drag City Records, a reputada editora independente de Chicago. A ideia era dar aos seguidores um vislumbre do homem que, depois de dez anos de silêncio, acabara de editar um fantástico disco sob o nome de Purple Mountains, e que no fim de semana seguinte começaria a tão aguardada digressão, com os primeiros concertos em muitos, muitos anos. Ao longo desse dia, Berman foi colocando imagens: fotografias antigas; selfies atuais com bichos na cabeça, uma foto a passear o cão. Ao fechar a empreitada, uma foto de um jovem DCBerman, com a guitarra no colo, e a singela mensagem de “good night”. Na manhã seguinte, o carismático poeta e vocalista dos Silver Jews e Purple Mountains estava morto.
Berman nasceu em 1967, na Virgínia, e teve uma infância normal até ao divórcio dos seus pais, aos sete anos de idade. David ficou com a mãe, mas visitava frequentemente o pai, que se mudara para Washington. Foi na universidade que conheceu e se tornou amigo de duas pessoas que marcariam a sua vida e o seu percurso: os colegas Stephen Malkmus e Robert Nastanovich. São desses tempos as primeiras aventuras musicais, que começaram a ganhar forma já em New Jersey, para onde os três se mudaram, arranjando emprego como seguranças do Whitney Museum. As primeiras gravações dos Silver Jews, caóticas e sobretudo conceptuais, datam de 1989. Pouco tempo depois, Malkmus funda os Pavementem Sacramento, juntamente com Nastanovich e o amigo de infância Scott Kannberg (Spiral Stairs).
A vida das duas bandas estava necessariamente ligada, sobretudo ao início, quando nenhuma das duas passava de um de muitos projectos inocentes e excitantes que, como outros, não daria em nada. É relativamente indiferente qual dos grupos nasceu primeiro. O que é facto é que os Pavement foram efectivamente os primeiros a chegar ao grande público, logo a partir de 1992, com Slanted and Enchanted. Tanto Berman como Malkmus eram figuras fortes, ainda que inseguras, sobretudo o primeiro. Na verdade, mesmo que tenham coincidido na origem, os Silver Jews eram a banda de Berman, que praticamente compunha tudo, tal como os Pavement eram sobretudo a banda de Malkmus.
Os Jews nunca tiveram uma vida fácil, e a personalidade atribulada de Berman não permitia que as coisas tivessem sido diferentes. Ficou célebre o período de depressão que viveu quando os Pavement começaram a ficar enormes, e os Jews eram vistos como um projecto paralelo de Malkmus. E se o som dos Pavement assentou que nem uma luva no espírito slacker e ruidoso dos anos 90, os Jews sempre foram algo diferente. Berman sempre teve um pé no country alternativo, tanto no universo como na música, e se Malkmus olhava as letras quase como um mal necessário, o seu comparsa sempre foi, desde a origem, um poeta de primeira água.
A estreia nos longa duração deu-se em 1994, com Starlite Walker, uma pérola de rock/country alternativo e lo-fi. A reacção, exceptuando de alguns conhecedores, não foi esmagadora, algo que seria comum a praticamente todos os discos dos Jews. Dois anos depois, surge The Natural Bridge, com graves problemas entre a banda. Os Pavement já andavam na estrada e conheciam o sucesso, mas Malkmus e Nastanovich acederam a ir para estúdio com o amigo para gravar o disco. Lá chegados, não havia alojamento para eles e Berman não tinha sequer assegurado o pagamento do estúdio. Insatisfeito com as suas letras (sempre foi um perfeccionista doentio com as palavras das suas canções) e perante a desilusão dos seus amigos, Berman abandonou mesmo o local, deixando um futuro incerto para a banda. Nastanovich acabou por pagar o estúdio com o seu cartão de crédito e aproveitaram para gravar um EP para os Pavement. The Natural Bridge acabou por ser gravado por Berman com outros músicos, efectivamente oficializando o que já se sentia: os Silver Jews eram a sua banda. No meio de episódios depressivos que o acompanharam toda a vida e de problemas com álcool e drogas, o tom desse disco é sombrio, embora seja muito bom e contenha vários temas muito fortes. Para o músico, Malkmus e Nastanovich tinham desistido dos Jews quando os Pavement haviam provado ser o melhor veículo para o sucesso.
Na verdade, Malkmus (como outras grandes figuras como Will Oldham) sempre manteve uma profunda amizade e admiração por David Berman, pelo que se juntou novamente aos Jews para a gravação de American Water, de 1998, que é para muitos a obra-prima da banda. Mesmo com a visibilidade de Malkmus e com uma produção mais forte, o disco voltou a ser um fracasso de vendas, ainda que novamente merecesse elogios de alguma crítica mais atenta. Um ano depois, em 1999, é editado Actual Air, o primeiro livro de poesia de DC Berman, ainda hoje aclamado por muitos como o seu melhor trabalho de escrita. Em 2001, é editado Bright Flight, já sem Malkmus, e é desse tempo a relação de David com Cassie, com quem casaria e que viria a ser baixista na encarnação seguinte dos Silver Jews. Mais, viria a ser o grande amor da vida de David, a figura estabilizadora e carinhosa que ele sempre procurara.
Mas mesmo isso não seria suficiente para debelar a depressão crónica e a insegurança de Berman. Em 2003, tenta o suicídio, com uma combinação de álcool, Xanax e crack. Salva-se, e segue-se um ressurgimento espiritual que o fez aproximar-se do judaísmo, a religião da sua família. Esse despertar leva-o, em 2005, a juntar de novo os Jews para uma nova vida. O resultado é o fantástico Tanglewood Numbers, que finalmente traz uma produção mais profissional ao som da banda, ainda que sem o polir demasiado. Malkmus e Nastanovich regressam, Will Oldham faz uma perninha e Cassie, já Cassie Berman, ganha lugar definitivo nos Silver Jews. Esse disco, a presença de Cassie e o judaísmo dão nova força a Berman, que aceita algo até então inédito: fazer uma digressão. Europa, EUA e Israel (onde foi filmado o muito interessante documentário Silver Jew, de 2007) foram os países visitados.
Aproveitando o embalo, 2008 vê a edição de Lookout Mountain, Lookout Sea, no qual Malkmus volta a participar com a sua voz e guitarra. O disco é bem recebido, ainda que Berman tenha dito em entrevistas recentes ter ficado desiludido com uma crítica mediana por parte da Pitchfork. “Senti que tinha atingido o pico, que tinha escrito tudo o que queria escrever naquele disco”, revelou, lamentando não ter sido o suficiente para uma validação mais assertiva. Na verdade, Berman sempre sabotou as hipóteses de sucesso dos Jews: não dava concertos, não aceitava promoção por parte da Drag City, passava anos sem dar entrevistas ou falar com os media. Essa contradição – querer ser autêntico e não se vender e ainda assim desejar os elogios do público e da crítica – nunca foi verdadeiramente resolvida.
À boleia da internet, a reputação dos Jews, ainda assim, ia crescendo, à medida que mais e mais músicos o citavam como uma referência e uma inspiração. Foi, por isso, totalmente inesperado que, em 2009, David C Berman tenha anunciado o fim dos Silver Jews. “Sempre disse que pararíamos antes de ficarmos maus. Se continuamos a gravar ainda posso escrever acidentalmente a resposta a “Shiny Happy People””, foi a justificação, colocada num fórum online. Imediatamente a seguir, outra mensagem, desta feita sobre o seu pai: “o meu pai é um homem desprezível. É uma espécie de molestador da humanidade. Um explorador. Um filho da puta a um nível mundial”.
Era a primeira vez que alguém ouvia isto e, ainda por cima, David dizia que o seu pai era um dos motivos pelos quais terminara os Jews: tinha vergonha de ser filho de tal pessoa. Richard Berman é um profissional do lóbi, um republicano que passou a vida a representar, em Washington, os interesses das indústrias do álcool, das armas, do tabaco ou dos refrigerantes. Para o comum dos mortais, não há aqui pecado inultrapassável, mas David claramente não pensava o mesmo.
Depois desse episódio, o silêncio absoluto.
Soube-se mais tarde que David chegou a arrendar uma casa com vista para a antiga casa do seu pai, onde passava temporadas em criança, após o divórcio, e chegou a colaborar com a HBO para um documentário sobre o pai, acabando por desistir. Voltou para Nashville, para Cassie, onde se enterrou na leitura, algo que descreveu como “um sonho de infância”. Cassie, que amava profundamente a música dos Silver Jews, nunca encarou de bom grado o fim da banda, mas não teve remédio que não aceitar. Continuou a tocar música em vários grupos e voltou a estudar. David, por sua vez, ficava sobretudo por casa, separando-se cada vez mais do mundo. A tensão entre a jovial Cassie e o cada vez mais soturno e retirado David foi-se acentuando, e a relação sofreu. Há dois anos, a mãe de David morreu. No dia dos namorados de 2018, Cassie acabou mesmo por sair de casa, ainda que não se tivessem oficialmente divorciado.
Só podemos especular, mas terá sido então que David sentiu que tinha de fazer alguma coisa. E isso foi voltar a fazer música, até porque as dívidas foram-se acumulando sem uma fonte de rendimento que, mesmo que pequena, só a música lhe poderia proporcionar. As músicas foram surgindo, mas David não tinha uma banda. Houve algumas falsas partidas com artistas como Dan Bejar (Destroyer) ou Dan Auerbach (Black Keys), mas sem resultado. Seria preciso ajuda, e David respondeu a um antigo email de um membro dos Woods. A ajuda vinha a caminho, e foi com Jeremy Earle e Jarvis Taveniere que Berman viria a gravar o seu último disco, sob o nome de Purple Mountains.
É um disco absolutamente extraordinário, um regresso em topo de forma, musicalmente e liricamente, centrado na solidão, na sua crise conjugal, na morte da sua mãe, mas com uma sonoridade rica, completa, e por vezes mesmo positiva. A Drag City, a sua editora de sempre, conseguiu reavivar a sua carreira, e nos últimos meses David vivia mesmo num apartamento na sede da editora, em Chicago, mesmo ao lado do gabinete do CEO, que visitava David frequentemente.
A digressão, que juntamente com as vendas do disco ajudariam Berman a pagar as suas avultadas dívidas, começaria a 10 de Agosto, com datas nos EUA e Canadá, a que se juntariam eventualmente actuações na Europa. Berman, o homem que não fazia promoção, aceitou a 7 de Agosto tomar conta das contas de instagram e de facebook da Drag City, com um conjunto de mensagens que começou com um pequeno vídeo em que se vê David – mais pesado e envelhecido do que nos lembrávamos – a dizer “everything is in its place” e terminando com a tal foto de um jovem David, de guitarra, com a inocente legenda de “good night”.
A três dias da primeira digressão numa década, armado com um dos discos mais brilhantes dos últimos anos, David sabotou tudo. A depressão, a ansiedade, o medo, tudo temas claramente vertidos no álbum e que ele tinha confessado abertamente em entrevistas recentes, foram mais fortes.
Ficam as músicas e as suas palavras, coisas que salvaram certamente muitas vidas ao longo dos anos, foram companhia de almas atormentadas e que encontraram consolo na beleza, na solidão e na profundidade terna e por vezes humorística da sua mensagem. Além de canções, as pessoas partilham frases, letras de músicas, poemas. A vastidão do contributo lírico de David é enorme e tem o condão de, de forma poética e ao mesmo tempo acessível, tocar cada um de nós, como se descrevesse exactamente aquilo que sentimos. Essa é a marca dos realmente grandes.
Os seus velhos amigos Malkmus e Nastanovich, Cat Power, Steve Gunn ou Kevin Morby prestaram-lhe sentidas e tocantes homenagens, e são múltiplos os relatos de consternação pela sua morte, e de admiração pelo seu incrível contributo.
David foi-se embora quando ainda vivíamos na euforia de o termos recuperado, quando já não o esperávamos.
“The end of all wanting is all I’ve been wanting”, cantava ele em “That’s just the way that I Feel”, tema espantoso que abre Purple Mountains. O fim do desejo, o fim da insatisfação, o fim das expectativas que tendiam a ser defraudadas. É isto. Aí está.
Que tenha encontrado a paz que, por cá, nunca verdadeiramente viveu.
Obrigado por todo o conforto e companhia ao longo de tantos anos, David.
Good night.