Começando: cri•a•tu•ra (latim creatura, -ae), substantivo feminino; todo o ser criado; pessoa ou indivíduo; pessoa inteiramente devotada a outra; pessoa que deve muito da sua formação intelectual, ideológica a outra.
Mas tentar encurralar os onze (!!!) que fazem dos seus braços erguer o projeto musical do mesmo nome numa definição de dicionário revela-se um exercício inútil: os próprios, prevendo o rol de adjetivos mais ou menos agradáveis ou corretos que serão arrebatados na sua direção, encarregam-se de serem eles a entregar aos críticos e ouvintes uma definição concreta, pessoal e poética, roubando-lhes as palavras das mãos. E dita esta:
“A CRIATURA é um bando repleto de músicos, fotógrafos, cantadores, técnicos, produtores, videógrafos, artistas. Todos eles são criadores. Também eles são criaturas.
Diz o mapa que está na capa, que nasceu uma Criatura para amar em pedra dura. Algures no primórdio de um novo ciclo de uma árvore infinita.”
Muitas palavras para tão pouca coisa? Parece que não. Ao debruçar-nos sobre o seu primeiro disco, Aurora, compreendemos que nem todas as palavras do mundo chegariam para ilustrar a enormidade de caravela com o qual o disco navega para dentro do nosso quotidiano. É um disco imponente, que sabe a honesto sem nunca cair no desastrado, que ruge com força e graciosidade sem nunca ceder ao pretensiosismo. A tripulação é farta: além dos onze músicos, que contribuem com um rol de instrumentos infindável – guitarras, baixos, violinos, cavaquinhos, baterias, bandolins, trompetes, flautas… – conta também com a participação arrepiante do Grupo Coral e Etnográfico da Casa do Povo de Serpa.
Mas quem são estas criaturas quando nos propomos a pintá-las não em definições emprestadas de dicionário mas sim em ondas sonoras? São uma verdadeira força da natureza que nos aterrou nas mãos vinda do lado todo e de lado nenhum.
Clarificando: os Criatura apresentam-se, no seu primeiro disco, como o brotar de uma nova semente no solo frequentemente árido que é o panorama musical português. É uma mistura de tantas coisas diferentes e o nascimento de algo completamente novo, fazendo crescer ao longo de quarenta minutos um arquipélago sonoro simultaneamente desconhecido e familiar. O tradicionalismo e o folclore lusitano fervilham nas suas veias: são momentos como “Moda Nova” – uma quadra que tem muitos mais anos do que o próprio projeto – ou “Menina da Paz” que ilustram a beleza transcendente e intemporal do Cante Alentejano. Faixas que se movem mais velozmente, como “Pastor Sem Cajado”, com o seu baixo serpenteante, ou a frenética “Tempo”, lembram a força e o carisma de um Fausto Bordalo Dias. É uma reciclagem que estampa no produto final uma personalidade forte e vincada, que nunca se transforma no rio do qual bebe – o casamento de uma sonoridade intemporal com algo tão novo e fresco que faz o coração bater mais rápido.
Terminando: os Criatura são uma tempestade que se aproxima a passos-largos, e que prometem sair de 2016 com provavelmente o melhor disco português do ano (não querendo afugentar a competição). Será drástico apontar uma previsão tão extrema quando ainda nos restam oito meses para decidir? Depois de nos deixarmos invadir por Aurora, a dúvida já se afasta. Os Criatura são indefiníveis: pela crítica, porque já lhes completaram os parágrafos, por eles próprios, porque fica ainda tanto por dizer. A única maneira de descobrir é ouvir. Os Criatura são daquelas bandas que surgem nesta pequena porta da Europa uma vez a cada mil luas: aproveitemos.