Versus Infinitus é o segundo álbum dos Cobra ao Pescoço e está para os ouvidos para este metalhead cinquentão, como a chamada comida de conforto está para as minhas papilas gustativas.
Eu disse a mim mesmo que ia evitar as metáforas com comida, mas deveria saber melhor! Enquanto não treinar o algoritmo do reels para não me dar tantos vídeos de receitas será tremendamente complicado! «Nada desisto faz sentido» (“Débil May Cry”).
É tão fácil e satisfatório entrar neste disco, como saborear uma bela pasta, uma empada ou um daqueles assados feitos pela minha mãe! Não é um prato exótico, erudito ou revolucionário, é um disco que recorre a ingredientes bem conhecidos, escolhidos a dedo e cozinhados com paciência, ganas e carinho … e, adivinho, enquanto se bebe um bom copo de tinto! As dez faixas de Versus Infernus tomam pouco mais do que meia hora. Corremos o risco de engolir a coisa à bruta e termos de nos deitar no sofá a seguir para digerir a coisa, ou pior, de não apreciar condignamente todos os detalhes, todos os cambiantes de sabor e de texturas existentes ao longo do disco. Portanto, e se me permitem, deixo aqui dois conselhos: Primeiro ouçam-no livremente e, se puderem tentem apanhá-los em palco (vale bem a pena), depois … sentem-se um pouco e mastiguem com calma, cerca de 20 a 30 vezes cada porção de comida, como mandam os especialistas.
As malhas dos Cobra ao Pescoço partem de uma estrutura aparentemente simples. As linhas vocais de David Taylor vão disputando o protagonismo com os riffs que Gil Morais vai conseguindo espremer da guitarra. Enquanto isso, o mascarado Lara Soft vai equilibrando o barco regulando a força e o ritmo das batidas às exigências da contenda e o desgraçado do Emanuel Charanga conduz o seu baixo pelas curvas rítmicas e contra curvas melódicas da vizinha Serra da Lousã!
Aparente mente! Essa estrutura sustenta e organiza uma série de elementos que o quarteto da Figueira da Foz vai colocando nas suas composições. Comecemos pela voz, ou melhor, pela multiplicidade de vozes que David vai raspando da sua alma e do seu estômago. Ao registo punk rock, audível principalmente naqueles refrões hínicos (como em “Bathsheba” ou “Cruz credo”), David acrescenta momentos meio rap, meio spoken word, fazendo-nos lembrar o Pac Man em “Pequena Esfera de Black Metal” para se lhe apetecer passar num segundo para os guturais medonhos de “Soraia Chaves” e do fim de “O ano em que não eu consegui dormir”, ou fazer-nos festinhas com falsetes como na magnífica ponte de “Cruz Credo”.
Mais do que exibir os trunfos, esta instabilidade parece responder ao que as canções vão pedindo em cada uma das suas camadas (cheira a prog, por vezes, mas já lá vamos) e principalmente a um cifradíssimo conteúdo lírico que nos faz temer pela tranquilidade mental daquela alma. Recorrendo menos ao registo do trocadilho do que no disco anterior (Deus Mastiga … pois!), mantém-se o estilo stream of consciousness, misturando idiomas, trocando sentidos e direções ao estilo de Allen Iverson. Há frases deliciosas de tão enigmáticas espalhadas por todo o disco, mas permitam-me destacar o «A rua cospe sirenes e eu fico aqui» da pequena esfera.
Do outro lado do espelho das vozes de David Taylor (o plural é propositado) estão as guitarras de Gil Garcia. O rapaz coleciona riffs, licks e demais truques com termos em línguas estrangeiras e debita-os no segundo e no local certos e ainda vai buscar outros em segunda linha como aquelas belas pequenas notas rítmicas em “Cruz Credo”.
E sim, há pouco mencionei prog! E se para alguns de vós for palavrão, escolham outro termo qualquer, mas pensem na capacidade da banda em conjugar toda a diversidade de camadas, tons e registos sem tornar a coisa em descomposições cacofónicas. Para tal, muito contribui uma secção rítmica com o pulso de quem passeia dois pitbull enquanto manda mensagens à namorada!
Como admitido pela banda em entrevistas por podcasts mais ou menos obscuros, a sua dieta musical passou por tudo o que se tem feito no espectro mais alternativo (e menos extremo, diria eu) da área do metal e do punk. As influências estão lá e serão tanto deles, quanto vossas ou minhas … mas estão cozinhadas à moda da Cobra, que é o que se quer.