Um trabalho muito bem conseguido da rapper nortenha, que se reafirma como uma das vozes mais marcantes da música portuguesa.
Em Um Gelado Antes do Fim do Mundo, Capicua (Ana Matos Fernandes) apresenta-nos um disco que não é só um disco de hip hop: além das palavras afiadas da artista este trabalho traz-nos uma produção mais envolvente, com mais camadas, e com uma enorme fluidez e onde a escrita continua a ser o fio condutor.
É também um disco que nos conta uma história, como se lêssemos cada canção como um capítulo de um livro ou uma notícia num jornal. A escrita é confessional sem ser auto-centrada, política sem ser moralista. Capicua não nos quer dar lições sobre o mundo: ela sabe que nós já sabemos que vivemos num lugar estranho.
Nas suas canções, espelha um bocadinho da sua experiência, que pode ser a experiência de cada um de nós. Adotando um registo introspetivo, fala dos desequilíbrios sociais, dos desafios da maternidade, do peso carregado pelas mulheres, com uma forte consciência do mundo atual que contrasta com o título quase infantil do disco.
Sentimos, cada vez mais, que o mundo caminha para um lugar estranho, perigoso e difícil de prever. Mas continuamos na nossa vida, comendo gelados, adoçando os dias. É este contraste que também vemos no disco: entre o dia a dia e a vida política, entre a simplicidade e a complexidade do mundo, entre a intimidade e a consciência de classe. Vamos vivendo, aproveitando, até o mundo entrar em colapso, sem esquecer aquilo que marca o presente: as incertezas futuras, a precariedade, a desigualdade, e o desgaste físico e emocional.
Musicalmente, o disco afasta-se do hip hop puro e duro, abrindo espaço a arranjos interessantes e a uma produção cuidada. As colaborações são discretas e funcionam como um complemento à canção.
Algumas canções são especialmente bem conseguidas: em “Ao Ocaso” ouvimos também Toty Sa’Med; “Make Teenage Ana Proud”, resume bem o espírito do disco. Em “Danúbio”, densa e pesada, contamos com a voz portentosa de Gisela João. Em “I”, “II”, “III”, “IV” e “V” temos apenas curtas declamações de Capicua.
Este é um disco que precisa de escuta ativa, atentando às palavras de Capicua e às diferentes sonoridades. De cada vez que o ouvimos descobrimos um novo verso, ou uma nova camada. É um trabalho muito bem conseguido da rapper nortenha, que se reafirma como uma das vozes mais marcantes da música portuguesa.