A ideia de escolher 10 discos da nouvelle chanson française do meu inteiro agrado para mais um artigo no Altamont tinha vindo a ganhar espaço crescente na minha cabeça, até que chegou o dia de meter mãos à obra. A razão foi múltipla, mas desde logo se prende com o facto de considerar ser uma área musical pouco conhecida em Portugal, mesmo por muitos daqueles melómanos que tudo conhecem e estão sempre a par do que se vai fazendo (e do que já foi feito) pelo mundo. A cultura francesa e o acesso à mesma foi, aos poucos, perdendo terreno nas nossas rádios, televisões e imprensa em geral, tal a supremacia atribuída e comummente aceite da língua e dos valores culturais anglo-saxónicos. No entanto, e desde sempre, aquilo que se foi fazendo e se faz em França tem quantidade e qualidade suficientes para rivalizar com as modas que imperam, embora isso não aconteça, de facto. Bastaria referir 10 discos deste século XXI para tornar evidente o que digo, mas a opção foi alargada ao século passado, uma vez que nele há um artista desse século que não poderá ser excluído do que aqui se pretende fazer, pela simples razão de considerar esse artista (e o disco escolhido) como uma espécie de base sem a qual a nova canção francesa não seria o que hoje é. A predominância neste Top de discos saídos nos últimos 14 anos será, portanto, um facto, sobretudo para que se perceba que o passado da música gaulesa, sendo importante e de extraordinária importância histórica, cultural e cívica para a Europa e para o mundo, foi tendo seguidores, desenvolveu ramificações interessantes e merecedoras do melhor acolhimento possível.
Todas as escolhas são subjetivas, e tratando-se de uma seleção tão pessoal como esta, os 10 discos aqui apresentados serão a prova inequívoca dessa mesma subjetividade. Para que esses discos surgissem alinhados neste artigo, muitos e muitos outros tiveram, obviamente, de ficar de lado. No entanto, e para tentar alargar o conhecimento sobre a matéria em causa de quem lê neste momento estas palavras, optei por incluir, à margem do referido Top, outros discos dos artistas escolhidos, que merecem igualmente escuta atenta. Assim, a sensação de terem sido injustamente excluídos do Top final não me parecerá coisa tão cruel. Feita esta já longa introdução, vamos aos discos, vamos ao Top 10 da canção francesa, que é o que importa, lembrando que a ordem de entrada dos discos escolhidos é cronológica, para facilitar o meu próprio trabalho. Allons-y, então, começando com a tal exceção referida algumas linhas acima.
1 – Serge Gainsbourg – Histoire de Melody Nelson (1971): Serge Gainsbourg tinha “Lolita”, o livro de Nabokov, como um dos seus romances preferidos, pelo que não será despropositado incluir essa referência aqui, sublinhando-a. Porquê? Pela simples razão de Jane Birkin (que figura na capa do disco) ser a Lolita de Gainsbourg. Ou seja, toda a sensualidade e sexualidade da personagem do escritor russo estão presentes no disco em questão. Em apenas 7 temas, Gainsbourg fez um disco histórico. Ainda hoje exaltado por muitos compatriotas e artistas do mundo inteiro, Histoire de Melody Nelson gira à volta de um conceito, de uma história simples e metaforicamente semi-autobiográfica: um homem de meia idade (Gainsbourg, por exemplo) conduz um Rolls Royce Silver Ghost e choca de forma propositada com uma bicicleta dirigida por uma jovem rapariga (Melody Nelson, ou seja, Jane Birkin). Depois do acidente, o amor crescente entre ambos toma conta de um cenário esteticamente sussurrante, cheio de fumo e pulsação sensorial. Ao longo de apenas 28 minutos (nem chega a tanto), o disco oferece-nos ambientes de guitarras, funk, spoken word e um feeling sedutor sem par no panorama musical francês da altura. Esta não é uma obra prima. Esta é a obra prima de Gainsbourg, e base de muita da nouvelle chanson française está aqui.
* outros discos de Gainsbourg recomendados: apetece-me referir toda a sua discografia, mas saliento Initials B.B., Jane Birkin / Serge Gainsbourg e L’Homme à Tête de Chou.
2. Thomas Fersen – Le Jour du Poisson (1997): Thomas Fersen já anda no mundo dos discos há largos anos, e apesar de ter uma discografia digna de menção, a sua obra é totalmente desconhecida da maioria das pessoas fora do espaço territorial francês. Hesitei entre este álbum e um outro, de 2003, intitulado Pièce Montée des Grands Jours, de que também gosto bastante. Ambos são bem representativos da sua visão artística. Mesmo sublinhando algum exagero no que direi a seguir, Thomas Fersen tem algo de Tom Waits (sobretudo na busca de ambientes de cabaret, de circo, de algum caos, embora sem o cenário decadente tão típico no autor americano, e sem as temáticas sombrias de que tanto gosta), mas também de Jacques Brel, por exemplo. Letrista de invulgar capacidade para retratar o realismo da vida, os seus trocadilhos são famosos, o seu imaginário invulgar (comida e animais, entre outras fantasias de artista) fazem de Thomas Fersen um artista que trilha um caminho muito próprio. A utilização de acordeões, de violinos, de contrabaixos e de tamborins dão à música de Fersen uma coloração muito típica, muito própria, sendo fácil, escutando-o, recuarmos no tempo até imaginarmos a cidade de Paris dos anos 50. Esplanadas ao sol, um bistrot perdido numa qualquer rua secundária, repleto de fumo, artistas da margem esquerda, palavras que retratam as coisas do dia a dia. Le Jour du Poisson é tudo isto, e outras coisas ainda, que podem ser descobertas a cada audição.
* outros discos de Thomas Fersen recomendados: Pièce Montée des Grands Jours, Le Bal des Oiseaux e Le Pavillon des Fous.
3. Keren Ann – La Biographie de Luka Philipsen (2000): O que mais me fascina em Keren Ann pode ser traduzido em duas palavras: delicadeza e fragilidade. É assim a cantora / compositora nascida em Israel, no ano de 74. A voz mostra-se como um suspiro, um sussuro encantatório. No disco La Biographie de Luka Philipsen mistura-se trip-hop com folk, mais o toque distinto do estilo francês, e tudo parece perfeito. Este é o primeiro disco de Keren Ann, e algumas das suas influências revelam-se bem. Há por aqui Gainsbourg em versão feminina, Suzanne Vega (repare-se no Luka do título, retirado da canção da cantora americana, e ao qual Keren Ann acrescentou o apelido da sua avó), Johnny Mitchell em versão inocente, e um pouco de Astrud Gilberto. Some-se ao que foi dito um certo ar a Portished e a ideia do que aqui temos ficará melhor definida. O cocktail não é explosivo (no que a expressão pode revelar de repentino e súbito), mas vai explodindo cá por dentro de forma aconchegante e segura. A presença de Benjamin Biolay na esmagadora maioria das 13 canções do disco (como co-compositor e até como cantor em “Décrocher Les Étoiles”) é um trunfo grandioso. E a inclusão do sucesso “Jardin d’Hiver”, gravado também por Henry Salvador no belíssimo Chambre Avec Vue, ajuda a dar ao disco um toque de charme indesmentível.
* outros discos de Keren Ann recomendados: La Disparition, Nolita e Keren Ann.
4 – Benjamin Biolay – Rose Kennedy (2001): Benjamin Biolay já dava nas vistas há algum tempo quando surgiu Rose Kennedy, primeiro longa duração do cantor e compositor francês.Viagem sonora ao universo da família Kennedy, centrado no olhar da mãe do malogrado presidente John Fitzgerald (que dá título ao disco e que viveu mais de 100 anos, sofrendo os inúmeros desastres a que a família esteve sujeita), o disco em questão surpreende pela coesão sonora, pelo conceito que evoca, pela delicadeza poética das letras e dos ambientes sonoros. Canções como “Novembre Toute l’Année”, “Les Cerfs Volants” e “Los Angeles” tornaram-se clássicos instantâneos, poderosas canções de charme como só os franceses sabem fazer. A voz, o timbre e o estilo composicional de Biolay fazem dele, como alguns dizem, o novo Gainsbourg. Embora percebendo a ideia, acho-a algo despropositada. No entanto, o lugar que Benjamin Biolay ocupa no atual panorama musical francês é bem cimeiro, e as expectativas em relação aos seus discos futuros são sempre enormes. Na minha opinião, Benjamin Biolay é o mais influente cantor / compositor da sua geração, e o mais completo.
* outros discos de Biolay recomendados: Négatif, Trash Yéyé e La Superbe.
5. Coralie Clément – Salle Des Pas Perdus (2001): Sim, é verdade. Há muitas semelhanças entre Coralie Clément e Keren Ann. Desde logo pela voz (que neste caso ainda é mais frágil e sussurante em alguns dos temas cantados, mas tão ao jeito de muitos grandes nomes da chanson française no feminino do século passado), mas também pelo estilo do repertório escolhido, embora neste caso a aposta na bossa nova e em ambientes jazísticos marquem um pouco a diferença. Outro aspeto que aproxima este disco do de Keren Ann é a presença (sempre importante) de Benjamin Biolay. Na verdade, Coralie e Biolay são irmãos, o que justificará o empenho de Benjamin em ajudar Clément. Pelo que se sabe, o disco terá nascido da ideia de fazer uma banda sonora pop para um filme que nunca existiu. Segundo a própria Coralie, se o filme existisse seria semelhante a A Bout de Soufflé, de Jean-Luc Godard. Salle des Pas Perdus vale pelo seu todo, sendo difícil destacar uma ou outra canção como mais emblemática. Os anos 60 e a nouvelle vague dos primeiros tempos andam de mãos dadas neste primeiro disco de Coralie, e isso é já muito para quem conhece e gosta desses meandros artísticos. A melancolia é evidente, e um simples olhar para a capa deste disco mostra bem ao que vamos, quando o ouvimos.
* outros discos de Coralie Clément recomendados: Bye Bye Beauté, Toystore e o e.p. C’Est La Vie.
6. Camille – Le Fil (2005): Camille é um caso muito sério da nova vaga de cantoras francesas. Ela tende a rasgar com o peso do passado, sem dúvida, mas não o faz por inteiro. A sua linguagem é revolucionária, e tem vindo a mostrar cada vez mais essa característica. Em cada disco seu dá um passo em frente, vai mais longe, como se estivesse permanentemente a questionar-se, a espicaçar os seus próprios limites. A minha escolha recaiu no seu segundo trabalho, e nas suas 15 composições percebemos bem que Camille não tem par na atualidade da música francesa. Há quem afirme estarmos em presença de uma “Bjork parisiense”. Percebe-se a ideia, mas parece-me curta a definição. A voz é sublime, e a sua extensão parece não ter limites. A estranheza de algumas composições e de alguns dos arranjos dos seus temas reforçam a ideia de uma artista diferente, fortemente comprometida com a sua arte, sem olhar a facilitismos. Tanto nos registos de estúdio como nos registos ao vivo, ouvir Camille é uma aventura enorme, deixando o ouvinte em permanente inquietação. Em Le Fil, canções como “La Jeune Fille Aux Cheveux Blancs”, “Pour Que L’Amour Me Quite” e “Quand Je Marche” mostram bem toda a beleza de que é capaz. Nelas, o encontro poético dos sons, dos versos e da voz é sublime. Inultrapassável, apetece mesmo dizer. E depois há ainda a tal dose de inconformismo, de estranheza, de irreverência. Basta ouvir, por exemplo, “Ta Douleur”.
* outros disco de Camille recomendados: Le Sac Des Filles, Music Hole e Camille Live Au Trianon.
7. Charlotte Gainsbourg – 5:55 (2006): O apelido que transporta é de peso, e isso nem sempre ajuda no processo de afirmação de um artista. Charlotte é mais atriz que cantora, embora vá estando em ambos os cenários de forma muito qualitativa. Filha de Serge e de Jane Birkin, Charlotte foi sempre vivendo rodeada de grandes nomes da cultura musical. No presente caso, uma pequena constelação de estrelas ajudou-a a construir um disco belíssimo, por vezes denso, outras vezes mais luminoso, mas sempre com preocupações melódicas bem evidentes. Jarvis Cocker, Neil Hannon, mas sobretudo os Air, que contribuem (e muito) para fazer deste 5:55 o melhor disco de Charlotte. Todas as canções são de autoria da dupla Nicolas Godin e Jean-Benoît Dunckel, e isso confere ao disco um ambiente especial. Nigel Godrich deu-lhe o toque de Midas final. As vozes de mãe e filha assemelham-se, por vezes, embora não haja colagem a esse legado maternal que é algum, como se sabe. Aliás, Jane Birkin falta neste Top, com disco em nome próprio, embora a sua presença em Histoire de Melodie Nelson atenue um pouco a ausência causada por imperativos do número de discos escolhidos. O disco Lolita Go Home, por exemplo, poderia constar nesta lista, fossem outros os limites da proposta apresentada. Enfim, fica tudo em família, e ninguém se zangará…
* outros discos de Charlotte Gainsbourg recomendados: Lemon Incest (mais pela curiosidade de ser um disco escrito pelo pai Gainsbourg para a filha, de apenas 13 anos), IRM e Stage Whisper.
8. Alex Beaupain – Les Chansons d’Amour (2007): Alex Beaupain é um músico de quase 40 anos, bem conhecido pelas bandas sonoras que foi fazendo, e que lhe deram alguma notoriedade nesse meio musical tão específico. Os seus discos a solo, no entanto, não serão tão conhecidos do grande público, embora sejam de enorme qualidade. Beaupain é mesmo um caso sério na música francesa atual, não apenas por ser bastante prolífico, mas sobretudo pelo seu lado pop solarengo que por vezes se faz notar nas suas composições, embora noutras tantas ocasiões não seja tão luminoso assim. Mas o que fica é o seu talento como criador de grandes e saborosas melodias que se colam ao ouvido com uma rapidez de bala disparada à queima roupa. O disco que escolhi é Les Chansons d’Amour, banda sonora do filme com o mesmo título, realizado por Christophe Honoré. Trata-se de um drama que é, em boa verdade e mais até do que isso, um musical. As canções servem o enredo, nos versos cantados, e os atores Louis Garrel, Ludivine Sagnier, Chiara Mastroianni e Clotilde Hesme revelam-se bem à altura das exigências do canto e da interpretação. Beaupain interpreta apenas uma canção, a bonita “Brooklyn Bridge”. Os melhores momentos, no entanto, estão em “As-Tu Déjà Aimé?”, “Si Tard”, “De Bonnes Raisons” e “Je n’Aime Que Toi”. Algumas das canções do disco tiveram uma primeira aparição na voz do seu autor no primeiro disco de Alex Beaupain, intitulado Garçon d’Honneur.
* outros discos de Beaupain recomendados: Garçon d’Honneur, Pourquoi Battait Mon Coeur e Les Bien-Aimés.
9. Julien Doré – Bichon (2011): Julien Doré começou a mostrar-se ao público francês através de um programa do canal televisivo M6 de nome Nouvelle Star, acabando por sair vencedor da edição em que participou, em 2007. Depois, e até aos dias de hoje, lançou 3 discos de estúdio, um dos quais este Bichon. Distanciando-se desse tempo inicial, Julien Doré faz deste Bichon uma obra segura, plena de referências que transcendem o simples universo das canções. Quem canta versos como “Ils pensent toujours que Klimt et Picasso faisaient du dessin pour enfant / mais nous, nous on est des chiens andalous” terá sempre a minha admiração. Pertencem a “Baie des Anges”, magnífica canção de entrada de Bichon, mas outras há (quase todas, aliás) que colocam Julien Doré num patamar de grande qualidade, como a gainsbourguiana “Golf Bonjovi”, a etérea “Glenn Close” ou a intimista “BB Baleine” (em duo com Françoise Hardy). Ou ainda o tema final, o delicioso e lânguido “Bergman”, a fazer lembrar Benjamin Biolay. O disco apresenta-nos 13 canções variadas nos estilos e nas formas, mas o álbum mostra uma coesão fora do vulgar, sobretudo pela voz que nos prende, independentemente dos registos em que se apresenta. Tenho a sorte de ter a edição especial em 2 cds, sendo o segundo um e.p. de 5 títulos + 2 inéditos, intitulado Julien Doré & The Bash. Vale bem a pena ouvir com atenção.
* outros discos de Julien Doré recomendados: o e.p. Moi… Lolita, Ersatz e Love.
10. Vincent Delerm – Les Amants Parallèles (2013): Vincent Delerm é um homem de múltiplos talentos. Compositor, cantor, instrumentista, autor dramático e fotógrafo, Delerm lançou no ano transato um disco sublime, ainda acima de alguns outros extraordinários álbuns editados ao longo da sua carreira. Bastante cinematográfico, Les Amants Parallèles vai construindo uma história de aproximações e afastamentos entre um homem e uma mulher, que vivem “en parallèle”. Sentimental até à medula, mas sem cair por um único segundo em sentimentalismos sonoros piegas, este mais recente projeto de Delerm é de uma enorme elegância, e os sons que nele se ouvem são apenas (embora isso seja surpreendente) de pianos preparados para parecerem outros instrumentos. Já o escrevi aqui, num texto sobre este disco, e repito-o agora: Les Amants Parallèles tem algo do imaginário cinematográfico de Godard e de Truffaut, a começar pela capa, mas sobretudo importa dizer que este é um disco outonal, invernoso, com o condão, no entanto, do calor de uma lareira acesa ao fundo da sala. Precioso objeto sonoro, capaz de nos levar (como me levou a mim) à rendição absoluta logo à primeira audição.
* outros discos de Vincent Delerm recomendados: Kensington Square, Vincent Delerm e Les Piqûres d’Araignée.
Concluindo, e mesmo assim retomando as ideias traçadas nas linhas iniciais deste texto, o que aqui se apresenta é apenas, e tão somente, a minha opinião. Vale o que vale, portanto. No entanto, como ouvinte atento aos sons vindos de França, parece-me haver algum equilíbrio nas propostas apresentadas, embora admita outras opiniões e outras escolhas que não estas, ou para além destas até. A intenção foi a melhor, garanto-vos. Assim a vossa boa vontade se disponha a descobrir alguns dos discos que aqui vos deixo, para então tirarem, naturalmente, as vossas próprias conclusões.