Ao longo dos seus 69 anos de vida e mais de cinquenta de carreira, apresentando um currículo invejável de vinte e sete álbuns, quarenta e nove compilações, seis EPs e cento e vinte singles, Bowie nunca se deixou ficar pelo mundo banal dos vivos: sempre se apresentou como uma espécie de camaleão extraterrestre, um ser de outra galáxia que caiu por acaso no planeta azul.
Talvez seja devido a esta máscara alienígena atrás da qual se escondeu que a sua morte, no passado dia 10 de Janeiro, se revele para muitos um fato inaceitável, implausível, impossível de digerir. Bowie não pode simplesmente morrer como morrem os comuns mortais: a morte, aspeto esse tão mesquinho que assola os nossos dias na terra, não podia de forma nenhuma levar um extraterrestre daqueles. Não pode, não pode, não pode.
Apenas dois dias antes de nos deixar, Bowie lançou o que será agora o seu disco final em vida: Blackstar, estilizado como ? (nem no título se deixou levar pela convencionalidade alfabética que assombra estes seus primos distantes, os seres humanos). E com Blackstar, chegou-nos “Lazarus”, o primeiro single.
“Lazarus” é o retrato doloroso de um homem que luta com a sua própria mortalidade, e, após a sua morte, toma proporções de arrepio: Bowie, que no vídeo que acompanha o single deita-se numa cama de hospital, de olhos vendados e corpo estagnado, começa logo por afirmar, com uma dose igual de certeza e de lamento: “look up here, I’m in heaven/I’ve got scars that can’t be seen”. As guitarras deslizam por trás da sua voz gasta, chorando a sua morte eminente. A melodia embala-nos num misto de nervosismo, ansiedade, calma e aceitação profunda do que viria para vir mas que ainda não sabíamos. E agora, voltar para ela após tudo o que aconteceu dói e anestesia.
“Lazarus” foi o golpe final de Bowie: foi o grito de guerra com o qual partiu, a sua prenda final para aqueles que sempre o ouviram ou os que atentaram na sua obra agora que a sua voz se silenciou: pouca diferença fará. Bowie é eterno, será sempre ouvido e descoberto enquanto haja seres humanos providos de ouvidos e coração neste pequeno planeta azul. E foi o seu ato final enquanto criatura superior: incapaz de aceitar a mesquinheza da morte, ato tão terrivelmente humano, elevou-se e ganhou-a. Ganhou-a com a destreza de se despedir a tempo e como quis, ganhou-a esperando-a, de mala feita, em vez de fugir dela com assombro como todos nós. E este último golpe, que foi Blackstar (?) e a própria “Lazarus”, não nos deve causar dor: deve-nos causar admiração pela capacidade pop que Bowie manteve até aos seus últimos dias. Mais nada nos pediu, nunca. E sabemos que está lá em cima, a olhar para nós, o eterno marciano: nunca chega a ser pessoa, mas a sua humanidade artística nunca nos deixará de aquecer os corações. Olhem para cima, lá está ele; boa viagem, homem das estrelas.