Na penúltima noite do Festival Jardins do Marquês tivemos direito a alinhamento de luxo com três grandes artistas da nossa praça. Nem o vento frio desanimou quem foi a Oeiras para ver Jorge Palma e Camané e Mário Laginha, que nos trouxeram dois belíssimos concertos. E que bom que é poder voltar a ouvir música ao vivo.
Quando o calor que se fez sentir durante todo o dia aparentava começar a dar algum descanso, juntámo-nos mais uma vez aos festivaleiros que entravam calmamente na Estação Agronómica Nacional em Oeiras, todos distanciados e de máscara como mandam as regras. Não deixou de ser estranho este acontecimento, quase errado: há quanto tempo não entravamos num festival? Ainda assim lá estava o palco, lá estava um respeitável food court, música nos altifalantes, um bonito fim de tarde. E afigurava-se melhor ainda dado que tínhamos um cartaz de luxo com nomes que, sendo à primeira vista bastante diferentes, tinham, ainda assim, pontos comuns, como pudemos testemunhar mais tarde. Falamos, claro, de Jorge Palma e de Camané e Mário Laginha.
À hora marcada anunciou-se o início do primeiro concerto e todos acorremos às respetivas cadeiras. Jorge Palma entrou descontraído com a banda que o tem acompanhado, também ela de luxo: Pedro Vidal, Nuno Lucas e João Correia (Tape Junk, Bruno Pernadas, Benjamim), Vicente Palma, que tocou antes de Rufus Wainwright no mesmo palco dias antes, e Gabriel Gomes (Sétima Legião, Madredeus). Sem perder tempo arrancam com “Tempo dos Assassinos” e notamos logo que o som está surpreendentemente bom atendendo às condições do recinto e ao vento que se faz sentir. Segue-se “Dormia Tão Sossegada” que não demora a promover um veemente abanar de cabeça ou de pé em algumas pessoas do público (a vossa humilde escriba incluída). No fim, Jorge Palma chama a atenção para a importância daquele momento em que voltam a tocar para um público. “Cara de Anjo Mau” e “Dá-me Lume”, esta última com o nosso frontman ao piano, no seu habitat natural, são as próximas num alinhamento animado e bem carregado de hits. O público começa por ser tímido no seu entusiamo (os lugares sentados e as máscaras não ajudaram) mas a banda não se incomoda e tem energia suficiente para distribuir por todos os presentes. Antes de tocar “Só”, Jorge Palma diz que “é uma grande honra e um privilégio fazer a primeira parte de duas pessoas que admiro muito, Camané e Mário Laginha”. Seguem-se momentos mais calmos e intimistas: primeiro com “Canção de Lisboa”, tocada só com piano e acordeão, depois “Estrela do Mar”, em que tivemos Jorge Palma a solo, mostrando que, apesar de a banda só acrescentar ao espetáculo, ainda dá bem conta do recado, e finalmente “Terra dos Sonhos”, que trouxe ao palco Vicente Palma para um dueto em família. A banda regressa e ficamos a saber que o concerto está a chegar ao fim quando Jorge Palma faz as apresentações (“nas luzes, Deus”, diz apontando para o pôr-do-sol). “Apesar de ter algumas músicas que já toquei milhares de vezes tenho sempre gozo mas no verão de 2007 já não podia ouvir isto”. A banda arranca assim com “Encosta-te a Mim” que o público recebe com regozijo, dando assim, de certa forma, razão a Jorge Palma. Mais uma vez os músicos mostram que são exímios instrumentistas e destaca-se o acompanhamento do acordeão. O concerto terminou de forma bonita com a esperançosa “A Gente Vai Continuar”, bom mote para o regresso aos festivais de verão e aos concertos.
Depois do intervalo regulamentar para troca de palcos e refill de copos, eis que nos sentámos todos de novo ao som da chamada para o segundo e mais aguardado concerto da noite. Contrastando com os seus antecessores, a apresentação de Camané e Mário Laginha é mais simples: cada um no seu canto do palco, quiçá se a pôr em prática as normas de distanciamento social. Os dois músicos gravaram em 2019 o álbum Aqui Está-se Sossegado e foi sobretudo nele que se baseou o alinhamento que apresentaram em Oeiras. Poucas pessoas discordarão de que Camané é um soberbo intérprete e um excelente frontman e ainda menos se atreverão a contestar o estatuto de Mário Laginha enquanto pianista. Foi isso mesmo que vieram demostrar. Um concerto com este grau de requinte pedia talvez uma sala fechada, mais pequena e sem o eco que se fez notar por vezes, mas mesmo em condições não ideias, não deixou de ser um belíssimo concerto.
Fazendo questão de mencionar os autores dos poemas como Fernando Pessoa ou David Mourão Ferreira, os dois músicos presentearam-nos não só com fados populares, como “Não Venhas Tarde” ou “Casa da Mariquinhas”, onde o piano de Mário Laginha se transforma em guitarra portuguesa, como também com composições originais (“Se Amanhã Fosse Domingo”) onde podemos ouvir mais notoriamente o piano jazzístico a que já estamos acostumados. Num intervalo entre canções, Camané aproveitou para corrigir Jorge Palma: “não é a primeira parte, é a parte dele e a minha parte”, depois de agradecer a oportunidade de estar ali e poder assistir a um concerto do colega. Tivemos até o privilégio de o ouvir interpretar a capella o início do tema que Jorge Palma escreveu para o novo disco de Camané.
O diálogo entre voz e piano prosseguiu com mais canções do disco: “Com Que Voz”, “Ela Tinha Uma Amiga” e “Guerra Das Rosas” surgiram de seguida, abrindo depois espaço para “Duas Lágrimas de Orvalho”, fado de Carlos do Carmo, “uma das nossas maiores referências no fado” a quem quiseram fazer uma “pequena homenagem”. Foi então que Camané abandonou o palco e nos deixou com um solo de Mário Laginha, bom momento para lembrar que também viemos para o ver a ele. Agora livre da responsabilidade de acompanhamento e de copiar trejeitos de outros instrumentos, Mário Laginha presenteou-nos com aquilo que faz melhor, uma sublime derivação jazzística perfeitamente enquadrada no espetáculo. Antes do obrigatório encore perante uma audiência a aplaudir de pé ouvimos ainda “Abandono”, outro belo momento. Finalmente, os dois músicos voltaram ao palco para interpretar “Fado Cravo”, de Alfredo Marceneiro, “um dos fados tradicionais que mais gosto” e “A Minha Rua”, onde se deu a única pequena gaffe da noite: Camané esqueceu-se da letra. “O vento está a levar-me as palavras. Eu canto isto há 30 anos”. O concerto terminou em bem, claro, dúvidas houvesse de que que estávamos perante mestres do ofício, mas não sem antes Mário Laginha acrescentar que a ele nunca lhe aconteceu esquecer-se das palavras (dado que não canta).
E assim terminou este estranho regresso a festivais e a concertos ao vivo. Secção a secção lá saíram calmamente os festivaleiros como mandam as regras vigentes. Não voltámos ainda ao normal, mas foi um privilégio poder voltar a ouvir música ao vivo, que tanta falta nos tem feito, sobretudo quando o alinhamento incluí nomes de luxo como os que tivemos oportunidade de ouvir. Saímos dos Jardins do Marquês de Pombal de coração cheio dos dois belos concertos a que assistimos, de três grandes artistas da nossa praça, cada um de seu quadrante estilístico, é certo, mas que partilham um enorme carinho de quem os foi ali ouvir. E é por ser claro que os músicos estavam tão satisfeitos de estarem ali a tocar para nós como nós de os ouvir a eles que importa repetir que a cultura é segura e que mal podemos esperar pelos concertos e festivais que com certeza se avizinham.
Fotografias gentilmente cedidas por Mário Crispim