As majors andam a dormir e as independentes aproveitam a brecha. Algumas das coisas mais interessantes do momento fazem-se debaixo do chapéu de pequenas editoras. O primeiro disco de Capitão Fausto foi gravado pela Chifre e só depois é que a Sony acordou. A Meifumado está por detrás da música saborosa dos Guta Naki e do PZ da “Cara de Chewbacca”. A Pataca não tem muitos discos mas os que tem são todos escolhidos a dedo, o filé-mignon da nova pop portuguesa. O primeiro disco da Márcia foi deles até ser reeditado pela EMI. Os You Can’t Win, Charlie Brown e o Walter Benjamin são valiosas pratas da casa. E o seu selecto catálogo não acaba aqui.
Já aqui tínhamos falado do síndrome de múltiplas personalidades musicais de que padece João Correia (aka TAPE JUNk), companheiro de Bruno Pernadas nos Julie & the Carjackers. Sabemos agora que não se trata apenas de uma patologia individual mas sim de uma verdadeira epidemia que atinge toda uma geração. Bruno é uma das suas mais destacadas vítimas e só na Pataca Discos marca presença em três projectos radicalmente diferentes: o indie rock de Julie & the Carjackers; o revivalismo – meio iê-iê, meio conjunto de baile – dos Real Combo Lisbonense; e agora, acabadinho de sair do forno, o seu primeiro disco a solo, o surpreendente How Can We Be Joyful In A World Full Of Knowledge.
A sua inquietação criativa extravasa as próprias paredes da Pataca Discos: Bruno Pernadas participa também no quinteto de jazz contemporâneo When We Left Paris Jazz Ensemble e no swing cantado de Suzie’s Velvet. A sua versatilidade é de tal ordem que se tornou um case study nas ciências musicais, havendo até hoje um aceso debate na comunidade musicóloga em torno da sua origem. Uns dizem que é da sua formação ecléctica: Bruno aprendeu guitarra clássica em adolescente, jazz no Hot Club, música erudita na Escola Superior de Música de Lisboa e pop na Alternative Nation da MTV. Outros afirmam que é do seu próprio temperamento, por natureza aberto a diferentes sensibilidades. Uma facção minoritária jura a pés juntos que a elasticidade estética é de tal ordem que Bruno Pernadas só pode ser um extraterrestre. Inclino-me para esta última hipótese.
A sua épica polivalência estende-se também ao domínio de vários instrumentos. Se bem que a guitarra seja a sua praia, Bruno interpreta quase tudo no seu disco: baixo, teclados, sintetizadores, vibrafone e o grosso do trabalho de voz. Apenas a bateria, sopros e demais vozes são entregues a convidados, muitos deles companheiros da Pataca Discos, como Afonso Cabral dos YCWCB, o já falado João Correia e Margarida Campelo dos Julie & the Carjackers e Real Combo Lisbonense. Mas a endogamia não é total: Francisca Cortesão dos Minta & The Brook Trout vem de fora e a malta dos sopros também (Sérgio Costa na flauta, Ricardo Ribeiro no clarinete e José Gonçalves no saxofone).
Quem espera deste disco canções pop penteadinhas verso-refrão-verso-outra-vez, desengane-se: How Can We Be Joyful In A World Full Of Knowledge é um álbum arrojado e experimental, em cujo processo criativo Bruno Pernadas sabia muito bem por onde começar mas não fazia a mínima ideia onde iria acabar. O disco é muito ancorado num género com pouca tradição em Portugal, o lounge, que pretende acima de tudo criar atmosferas quase cinematográficas, remetendo a melodia para um papel secundário. Sendo Bruno Pernadas um consumidor compulsivo de discos, vai-se servindo com naturalidade dos mais variados estilos (minimalismo, afrobeat, bossa nova, world music, neo-soul, indie folk) consoante a ambiência que pretende criar. A tonalidade quente e orgânica que prevalece, ao mesmo tempo sofisticada e melancólica, traça a pinceladas grossas o ambiente de cidade tropical desencantada que percorre todo o álbum. A nossa imaginação faz o resto. A ausência de interrupções entre as faixas, como se todo o álbum fosse uma só grande música, ajuda a criar o efeito de banda-sonora de um filme mental. Os loops contínuos que ouvimos em repeat são pausas na fita, momentos importantes em que rebobinamos a cena e a vemos de novo.
Eis então o filme que me veio à cabeça à medida que ouvia o disco. Imaginei um norte-americano desterrado num hotel em Copacabana (Rio de Janeiro), entrando numa espiral decadente e auto-destrutiva desde que a sua mulher lhe deu com os pés. Perdido num país exótico que não é o seu, e não compreendendo a porra de uma palavra de português, o nosso protagonista isola-se na sua dor, mal saindo do quarto de hotel, afogando as suas mágoas em whisky com muito gelo (faz muito calor!) e maus programas na TV Cabo. Samplers de programas de TV – a mais poderosa metáfora de solidão dos tempos modernos – atravessam aliás todo o álbum. Em “L.A.”, o contraste entre uma harmonia tristíssima e a voz ofensivamente bem-disposta de um locutor da TV a desejar boas festas só acentua a melancolia do enredo. Este é, claro, apenas um dos filmes possíveis. Cada um fará o seu. É essa a riqueza deste disco: a sua capacidade de nos comover de mil e uma maneiras diferentes.
Por fim, a questão filosófica colocada pelo próprio título do disco: qual a melhor forma de sermos felizes num mundo atafulhado de conhecimento? Creio que a resposta só pode ser uma: consumirmos radicalmente menos coisas, saboreando devagar apenas o melhor da vida. Como este disco.