
Volvidos dois anos da nossa última visita a Cem Soldos, a vontade de regressar à aldeia da música era imensurável. Cem Soldos tem a capacidade de nos prender numa questão de segundos, uma magia que se apreende sem darmos por ela. E, mesmo passado este tempo todo da última edição do Bons Sons à qual viemos, nunca esquecemos a luz e o amor que os quatro dias do verão de 2014 nos deixaram na memória e no coração.
Em 2016, a aldeia esperava por nós com os mesmos braços abertos de há dois anos: sem pretensiosismos nem as autênticas feiras de marcas em que os festivais de verão se têm tornado, indescritivelmente quente, com a dimensão mais humana de todos os festivais portugueses e cheia de boa música portuguesa.
A tarde, a par dos quase quarenta graus, começou com Alentejo Cantado, no palco d’A Música Portuguesa a Gostar Dela Própria – também conhecido como “o palco da igreja”, por se situar dentro de uma. As memórias dele eram as mais doces e arrepiantes e este ano isso não mudou. Em palco, cinco rapazes novos – não o tradicional grupo de velhotes de braço dado e vestes a rigor que se poderia esperar – revitalizavam a tradição do Cante Alentejano. Começando o concerto com dois cânticos religiosos, em respeito ao lugar onde estavam, o grupo rumou por uma série de modas e modinhas representativas dos sons do Alentejo, numa acção de divulgação e preservação da tradição. A harmonia das portentosas vozes arrepiava-nos e preenchia todos os cantos da igreja, entrando aqui e ali uma viola campaniça celestial e brilhante. “Ao Passar a Ribeirinha” punha todo o público em sincronia com os cinco moços de vários cantos do Alentejo. A certa altura, o sentimento de empatia geral no verso “Lá fora está uma braseira” e nas palmas de uma habitante de Cem Soldos já da sua idade que pelo concerto fora batia umas palmas pouco sincronizadas – mas bem sentidas -, acabando o grupo várias vezes por incentivar às palmas gerais, enquanto ensinavam ao público as letras do seu cante, que se ouvia em uníssono. Saímos da igreja felizes e com as medidas cheias, já com as expectativas altíssimas para o resto do dia.
Antes de João e a Sombra, que daí a pouco se ouviria no mesmo palco, muitos dos festivaleiros foram procurar um lugar abrigado do Sol. Alguns, como nós, rumaram de novo à igreja. Se tínhamos expectativas para o concerto que se seguia no palco d’A Música Portuguesa a Gostar Dela Própria, a desilusão não tardou a cair. Talvez porque o negrume triste das canções pedia outra temperatura e iluminação, talvez pelas letras e cantar meio pretensiosos de alguém demasiado revoltado com a sociedade. Ao contrário de Alentejo Cantado, onde quem entrou na igreja dali não saiu até ao fim, em João e a Sombra muitos foram os que abandonaram João e escolheram antes a sombra, lá fora.
O desejo de um bom banho num qualquer lago, rio ou oceano ou simplesmente de uns graus celsius a menos não foi impeditivo para a massa que encheu o palco Giacometti – um simpático coreto num outro largo da aldeia – para ver as Pega Monstro. Não era novidade pra nós que o seu rock instintivo tanto podia ser belíssimo como decepcionante. Infelizmente, o curtíssimo concerto oscilou mais para a decepção: um caldo de distorção morno e insosso onde nem sequer pudemos ouvir algumas das melhores tiradas do reportório das irmãs Júlia e Maria como “Não Consegues” ou “Branca”, do recente Alfarroba. Ainda assim, pontos para a canção de abertura que ouvimos ao longe, a caminho do palco, e nos parecia a versão de uma cantiga popular – provavelmente em jeito de homenagem ao homem que ao palco dava nome.
O próximo concerto tinha lugar no palco Tarde ao Sol – ou “aquele em frente à igreja”. Felizmente, o Sol já se escondia atrás da torre sineira e pudemos contemplar a fábula pós-rock dos Indignu com outra atenção. Esquecendo o facto de merecerem um palco bem maior, como o palco Eira, já que os músicos e o som que criavam tinham pouco espaço para existir, a apresentação dos Indignu à aldeia fez-se de um serpentar das várias apoteoses de Odyssea e Fetus In Fetu, incluindo dois temas novos do disco que está pra sair (Ophelia). Os violinos lacrimejantes juntavam-se a rasgos de guitarra nervosa e descontrolada numa massa emotiva bem cozida. Um pôr do sol épico que provocou um aplauso generalizado, com músicos e público igualmente gratos pelo concerto.
À hora de Birds Are Indie, muitos foram os que aproveitaram para jantar pelas tasquinhas espalhadas pela aldeia. O trio de Coimbra cantou as suas simpáticas canções de indie folk no coreto – palco Giacometti -, onde várias pessoas se sentaram, embaladas, a ouvi-los. Mas a primeira grande enchente do dia aconteceria no palco Lopes-Graça, onde os Danças Ocultas, acompanhados da Orquestra Filarmonia das Beiras, trouxeram a noite da forma mais bonita possível. Toda a gente se sentou no relvado sintético que fronteava o palco para ouvir as valsas, tangos e fandangos ritmados e contagiantes das quatro concertinas dançantes. O respirar do fole, colocado pelos quatro em primeiro plano, colchoava as cordas da orquestra, que teciam lençóis onde o público se sentava e deitava, deixando a noite inaugurar o fresco que todos desejavam.
No palco Eira, pelas 22h, ouviam-se as canções sensuais de Catarina Salinas e Ed Rocha Gonçalves – Best Youth – e todos os amores de verão por conciliar aconteceram, mais ainda na versão de “Never Tear Us Apart”, dos INXS, seguramente o momento mais orelhudo do concerto. Indie pop contagiante e dançável, com a vocalista quase a soar a Beth Gibbons, que aquecia para as estrelas da noite.
Primeiro, no palco Lopes-Graça, Kumpania Algazarra. Uma festa inacreditável que ia da música Balcã ao ska, da Índia às Arábias, com sopros loucos e descontrolados a fazer saltar e esbracejar todo o público. Não houve medidas para o suor e energia da Algazarra, num concerto onde público e músicos celebravam a alegria de viver com igual dedicação e delírio.
Por fim, a fechar os concertos do dia, os enormes Sensible Soccers no palco Eira. Uma experiência religiosa foi o que se viveu em “Clausura”, “Villa Soledade”, um delicioso “Bolissol”, “Nunca Mais Me Esquece” e tantas outras. O sempre virtuoso da guitarra e do teclado Filipe Azevedo domava os instrumentos com uma rapidez tal que quase só lhe víamos uma nuvem nas mãos. O sempre divertido Manuel Justo tratava dos essenciais teclados de fundo e da interacção com o público, enquanto Hugo Gomes dominava o sampler, o computador e a mesa de mistura, controlando a orquestra, dando André Simão o baixo e alguma percussão electrónica para dirigir o conjunto. Perdoem-nos o lugar comum, mas os Sensible Soccers mostraram que são mesmo como o vinho. Chegaram a Cem Soldos no ponto, com uma “Ulrike” mística e etérea a soar a Pink Floyd em “On The Run”, uma mágica e indiscritível “AFG” – provavelmente a maior viagem sonora feita em Portugal nos últimos anos – e “Shampom” pra fechar em beleza. Perto do final, Manuel Justo fazia uma declaração de amor ao festival: “Isto é adorável. Amanhã vou a chorar para casa”. E o público tanto “chorou” com a saída da banda do palco que os quatro nortenhos tiveram de regressar para a calorosa “Zaire 1974” e o delay magistral de “Sob Evariste Dibo”. Ficámos sem palavras e demos como terminado o primeiro dia de Bons Sons – que, para alguns, continuou noite dentro com o DJ set de Cláudia Duarte.
Fotos gentilmente cedidas por Carlos Manuel Martins e Pedro Sadio