Time Out of Mind é muitas vezes referido como o álbum onde Dylan cantou a sua própria mortalidade.
Time Out of Mind foi o primeiro disco de originais de Bob Dylan em sete anos. E o disco de originais de 1990 (Under the Red Sky) é bastante mau e teria sido uma pena se tivesse sido a última vez que ouvíamos uma canção nova do velho-judeu-cristão-novo. Não é que Dylan tenha estado em silêncio nesses sete anos, lançou dois discos interessantes de versões de canções da velha tradição folk da canção norte-americana em que é o único músico que se ouve. Mas o que Dylan andava a fazer principalmente era tocar ao vivo. Muito. Sem fim à vista. Pelo caminho, foi escrevendo umas letras que acabariam por lhe dar o trigésimo disco e um dos melhores registos da sua carreira.
Time Out of Mind não é necessariamente um disco directo e acessível. A produção parece querer imitar as gravações dos mestres do blues dos anos 50 que tocavam em qualquer sítio com um palco e uma licença de álcool (e se não tivesse também havia concerto. E álcool). E na essência, este é um disco de blues de um veterano que liderou uma banda excepcional a quem terá pedido encarecidamente (a princípio para depois fazer uso do seu jeito abrutalhado) que tocassem menos bem. E ao fim de mais de um ano de gravações, discussões, regravações, re-discussões, etc., etc., Dylan tinha um disco de 11 canções pronto a sair. Até que…
A 29 de maio de 1997 os jornais davam conta de que Dylan tinha sido internado devido a dores no peito, tendo sofrido uma infecção pulmonar grave que quase o levou Estige abaixo. E as canções do disco ganharam uma nova leitura.
Time Out of Mind é muitas vezes referido como o álbum onde Dylan cantou a sua própria mortalidade. Mas outra visão é que o músico cantou a vida, mas sabendo que esta tinha um prazo de validade. E atenção, não tentamos dourar a pílula e dizer que este é um disco cheio de vida e alegria. Não é. É soturno, depressivo e a pontos até apocalíptico. Mas é também uma magnífica colecção de canções.
“Not Dark Yet”, uma das melhores canções do cânone dylaniano, é quase uma marcha conformada em direcção ao abismo. O rufo da guitarra e da tarola fazem a canção marchar lentamente sempre em frente, em direcção ao fim mais que previsível. Mas ao longe vai surgindo uma progressão órgão que atribui um tom quase celestial ao tema que serve de base para uma das atuações vocais mais inspirada de Dylan. Na letra, Dylan mostra-se desencantado com a vida e quase que a desejar que chegue o fim: “I’ve followed the river and I got to the sea / I’ve been down on the bottom of a world full of lies / I ain’t looking for nothing in anyone’s eyes / Sometimes my burden seems more than I can bear / It’s not dark yet, but it’s getting there”. Mas no final dá-nos um aviso que não se move em direção à morte: “I was born here and I’ll die here against my will / I know it looks like I’m moving, but I’m standing still / Every nerve in my body is so vacant and numb / I can’t even remember what it was I came here to get away from / Don’t even hear a murmur of a prayer / It’s not dark yet, but it’s getting there”. Dissemos que era uma das melhores canções do cânone dylaniano? Corrigimos o eufemismo. É uma das melhores canções.
Já “Trying to Get to Heaven” tem um tom muito menos lúgubre, mas mostra um Dylan mais resignado com a sua vida e avisando que quer chegar ao céu “antes que fechem a porta”.
“Standing in the Doorway” faz lembrar uma canção algures entre o Leonard Cohen e Robert Wyatt (que roubaram descaradamente Dylan). É uma balada sublimada por duas guitarras steel pedal tocadas divinamente por Bucky Baxter e Cindy Cashdollar. E é, na verdade, uma das melhores canções de amor da carreira de Dylan. Numa canção cujo tom se aproxima de “Sad Eyed Lady of the Lowlands” (decisão propositada e totalmente compreensível porque a última canção de Blonde on Blonde é a melhor canção do mundo – agora usamos um pouco a hipérbole para compensar o eufemismo atrasado), o narrador explica o porquê de nunca poder aceitar que a pessoa que o tratou mal possa voltar (“I would be crazy if I took you back / It would go up against every rule / You left me standing in the doorway crying / Suffering like a fool”). Mas terminamos a canção e sabemos: a única coisa que o faria feliz seria ter o seu amor de volta.
Time Out of Mind seria um disco perfeito para encerrar a carreira de Dylan. Mas aí Dylan não estaria a mentir ao dizer que sentia a morte a aproximar-se. E como sem mentira, não há Dylan, passaram 28 anos e ele ainda cá está. Insha’Allah.