Facilmente esquecido no meio do turbilhão criativo que era Dylan no início dos anos 60, Another Side of Bob Dylan é um álbum de transição onde as canções apontam para dentro em vez de para fora
Não há de ter sido fácil para o jovem Bob Dylan perder o anonimato e tornar-se uma estrela em ascensão em tão pouco tempo, enquanto era empossado como o salvador de um género musical a lutar para se manter a par com os tempos (e sabemos como eles tendem a mudar) e era encarregado de levar aos ombros a intervenção cívica, a militância e a consciência política de uma geração, tudo isto antes de completar 23 anos. No meio de uma das décadas mais prolíferas da sua vida, em que o tempo para introspeção e autoconhecimento tinha de ser encaixado entre atuações ao vivo e sessões em estúdio, Dylan decidiu que não queria mais escrever canções “de apontar o dedo”. Sempre fugidio e misterioso, o novo trovador da revival do folk procurava uma forma de se demitir do seu posto passados apenas três discos e fazer um álbum novo onde escrevesse de e para si próprio, com histórias pessoais e realidades mais pequenas e próximas. Nascia assim Another Side of Bob Dylan.
Alguns factos históricos: Another Side of Bob Dylan foi gravado todo de seguida numa única sessão em junho de 1964 nos estúdios da Columbia em Nova Iorque. Bob Dylan cantou e tocou guitarra, piano e harmónica em todas as canções gravadas, 14 no total, acrescentando às 11 que entraram no disco, “Denise”, “”Mama, You Been on My Mind” e uma versão inicial de “Mr. Tambourine Man”. Na cabine de som, Bobby tinha, para além de uma trupe de amigos que o mantiveram divertido e bem abastecido de álcool, o mítico Tom Wilson, que já tinha gravado com ele o álbum anterior, The Times They Are a-Changin’, conhecendo, portanto, as idiossincrasias de Dylan em estúdio.
É pouco surpreendente que, no meio do turbilhão criativo que era Dylan no início dos anos 60, Another Side of Bob Dylan, o seu quarto álbum, seja desconsiderado pelos Dylan-ófilos como um álbum de transição, sem o peso de hino das canções dos dois álbuns anteriores nem a invenção elétrica que o disco seguinte traria. É fácil esquecermo-nos de Another Side. Porém, pretendo com esta humilde crónica convencer os estimados leitores a ouvirem este disco libertos das amarras do contexto socioeconómico da nação daquela altura ou de ideias pré-concebidas do que é ou deveria ser a música folk. Se lhe dermos uma oportunidade, Another Side tem potencial para nos maravilhar porque a verdade é que Dylan é genial, quer esteja a produzir alegorias sobre direitos humanos, quer esteja a inventar uma desculpa elaborada para dizer a uma rapariga que não a quer ver mais. Mesmo não estando a ser o porta-voz dos jovens americanos no que toca à questão da bomba atómica, Dylan não deixa de tecer histórias ricas, com personagens com a profundidade de quem as viveu na pele, e com potencial de ressoar na consciência do seu público com a mesma eficácia. Uma boa canção deverá suportar o teste do tempo; ora, haverá questão mais universal do que os amores e desamores de um miúdo de 23 anos?
Vejam-se “All I Really Want To Do” e “It Ain’t Me Babe”, duas das melhores canções do disco, que revisitam a clássica desculpa “não és tu, sou eu” (só que na verdade és tu), dando-lhe uma elegância poética que quase nos faz querer desculpá-lo. Haverá coisa mais intemporal do que esta? Já em “I Don’t Believe You (She Acts Like We Never Have Met)” Dylan parece provar um pouco do seu próprio remédio, numa deliciosa (in)coerência lírica. “Chimes of Freedom” é o mais perto que este álbum chega de ter uma “A Hard Rain’s a-Gonna Fall”, mas vale também a pena passar pelas belíssimas “Spanish Harlem Incident”, que não consigo ouvir sem pensar em Sixto Rodriguez, também ele trovador maldito que terá certamente ido beber aos primeiros discos de Dylan, e a triste balada “To Ramona”, a quem é dito, numa linha que poderia perfeitamente aplicar-se ao sujeito poético, “Everything passes, Everything changes, Just do what you think you should do”. “Ballad in Plain D” foi a canção que Dylan terá dito que preferia não ter escrito, uma triste descrição do fim da sua relação com Suze Rotolo, ainda a deixar transparecer demasiada mágoa mal digerida, característica de um término recente de uma relação significativa. Finalmente, “My Back Pages” é a pérola discreta de Another Side onde temos Dylan no seu melhor, a cristalizar as alterações rápidas na sua vida e a mudança na forma como as vê dizendo “Ah, but I was so much older then. I’m younger than that now”.
Another Side of Bob Dylan foi gravado depressa, condizendo com a velocidade a que se movia também a vida do seu autor naquela altura. O facto de serem poucas as suas canções que figuram em compilações Best Of não deve ser interpretado como um indicador de que o disco não vale a pena, atestando apenas a quantidade e qualidade de canções memoráveis que Bob Dylan conseguiu produzir num período tão curto. As canções de Another Side são belas porque sentimos que vêm de um lugar de verdade, nem sempre presente na obra de Dylan, e porque confirmam que, quer seja a falar de valores maiores ou de sentimentos menos nobres, a mestria de Bob Dylan está no seu domínio das palavras e na forma como cria melodias que põe a trabalhar para si, elevando ainda mais a sua mensagem. A obra de Bob Dylan transcende em muito estes pequenos affairs de que nos fala aqui, mas, em junho de 1964, Bobby Dylan era só um rapaz de 23 anos que queria ser mais fiel a si próprio e cantar umas canções enquanto bebia uns copos com os amigos. E ainda bem.
Muito interessante! Obrigado!