70% de Apocalypse é aquela voz trovão que abre montanhas ao meio. Bill não canta, desaba; não fala, interpela; não interpreta, comanda!
Depuração é uma das palavras-chave de Apocalypse, a recusa deliberada da ornamentação do disco anterior. Como se Sometime I Wish We Were an Eagle fosse belo demais, traindo a rudeza inóspita da América profunda e mitológica que tanto o obceca. Faltava-lhe o grão e a monotonia e o silêncio que agora abundam: os dedilhados folk repetidos numa quase transe, a percussão locomotiva no Mississippi levantando poeira vermelha, os salpicos ácidos da guitarra eléctrica, tentando ser feia e falhando, tudo gravado ao vivo no estúdio, sem rede, com tudo o que isso implica de vertigem e verdade. Cru mas límpido, atenção, que a produção descuidada dos tempos de Smog é mal que passou; Bill já não tem alergia a engenheiros de som, descansem os ouvidos mais delicados.
A melodia pouco importa em Apocalypse; o refrão nem existe, para que serviria? Tudo o que interessa são as paisagens austeras que vão sendo desenhadas, devagar, muito devagar, saboreando cada passo. Bill despreza tudo o que é moderno: a velocidade, o conforto, o artifício. Só lhe interessa o que é puro e primordial: o búfalo, o sol, a seara. Daí a sua obsessão pela música tradicional americana. Se há toques vanguardistas aqui e acolá, Bill pede logo desculpa pela vulgar contemporaneidade.
Segundo as nossas contas, 70% de Apocalypse é aquela voz trovão que abre montanhas ao meio. Bill não canta, desaba; não fala, interpela; não interpreta, comanda! Não fora o contrapeso das flautas e violinos à Astral Weeks, a sua voz barítono rebentaria prédios inteiros. Mesmo assim o chão estremece.
É de todo impossível imaginar Bill em tarefas mundanas: de certeza que nunca comprou um gel de duche em promoção, que não faz a mais remota ideia do que seja uma repartição de finanças. Bill está lá em cima, no cume de tudo, contemplando serenamente a trágica condição humana, avistando cá em baixo pequenos pontos, nós, comuns mortais. Bill nunca foi criança, estamos certos. Enquanto os outros miúdos jogavam ao guelas e atiravam pedras às rãs, Bill sentava-se debaixo de uma árvore, pensando no mistério do mundo. E assim continuará, sólido como um penhasco, eterno como uma pedra, enquanto o mundo persistir em girar…