A primeira edição do Átona Fest aconteceu no passado sábado nos Penicheiros, trazendo à tona o melhor do rock subterrâneo do Barreiro (e não só). O rock português continua vivo e recomenda-se!
No passado sábado rumámos até ao Barreiro para assistir ao primeiro Átona Fest, organizado por uma jovem banda local – os Má Vizinhança – e pela histórica SIRB “Os Penicheiros”.
O festival decorreu na ampla e bela sala de concertos desta Sociedade Barreirense e, sendo a primeira edição, teve direito a uma breve abertura falada para que alguns dos organizadores pudessem agradecer a presença do público e anunciar ao que vinham – promover a visibilidade de bandas rock emergentes e dinamizar os Penicheiros e a comunidade circundante.
Rapidamente a conversa deu lugar à música, e foram os Vendidos a iniciar a contenda. Os Vendidos são uma jovem banda de covers, e se é natural que esta expressão faça arquear as sobrancelhas de quem nos lê – como fez, aliás, a alguns dos presentes – a verdade é que os acordes iniciais de Smells Like Teen Spirit e um cardápio pleno de clássicos pujantes do Rock alternativo dos anos noventa (como os Nirvana, Pixies ou Blur), e da primeira década do século XXI (como os White Stripes ou os Arctic Monkeys), polvilhado por um sempre bem vindo Blitzkrieg Bop, teve o condão de animar as hostes e de provocar os primeiros momentos de agitação junto ao palco.
Seguiram-se os Extended Puppy, uma banda que em menos de 5 anos de existência, conta já com 3 álbuns no seu currículo do Spotify. Essa produtividade faz-se notar não só na diversidade de registos – já lá vamos – como na forma muito oleada como se apresenta. Para além da qualidade técnica demonstrada, as canções fluem de uma forma aparentemente natural, muito ancoradas numa voz poderosa a fazer lembrar Corey Taylor no seu registo Stone Sour. Musicalmente, e pela referida diversidade, os Extended Puppy são difíceis de caracterizar. A sua atuação arranca com um som potente e cativante alicerçado no metal alternativo dos anos noventa. Ao fim de poucos minutos, o público dança freneticamente e canta em plenos pulmões o orelhudo refrão de “Amenable”. De repente, a banda dá uma guinada até à balada acústica “A noite dos Demónios”, assumindo a partir daí uma veia mais roqueira. Resultado final: um punhado de canções orelhudas e muita curiosidade para saber para onde vão estes rapazes.
Entretanto, no Átona Fest, os rapazes dão lugar aos homens que conhecem bem o chão que pisam. Os Estado Terminal seguem sem medos pelos caminhos trilhados por bandas seminais como os Censurados ou os Trinta & Um e oferecem-nos um exercício sem mácula e sem misericórdia de Punk Rock em português e sobre as nossas realidades.
A banda mostra-se segura e entrosada, conseguindo tornar a sua atuação ainda mais dinâmica e robusta que o seu registo de estúdio de 2022 – o álbum “Corrosão”.
Não é, portanto, surpresa nenhuma que o público os receba com punhos erguidos, algum slam, e sobretudo uma grande alegria no olhar! Antes de terminar os Estado Terminal oferecem-nos a frase da noite – Mais vale perder uma vez, que ganhar sem saber porquê!
De Braga vieram os Wildchains, com a sua versão musculada e plena de groove de um Rock cujas influências parecem terem atravessado os Estados Unidos do Atlântico Sul ao Pacífico Norte, sem nunca soar datado nem colado a qualquer banda. Apoiados numa secção rítmica pulsante, a dupla de guitarristas mostra-se muito competente em misturar harmoniosamente ganchos melódicos com os ritmos cheios de balanço. Como complemento, uma voz grave e cheia de alma. Os Wildchains apresentaram uma coleção de canções interessantes que precisam e pedem mais audições. Venha de lá esse primeiro álbum!
Passemos uns passos à frente para repetir o mesmo pedido para os cabeça de cartaz – Má Vizinhança. Esta é a segunda vez que os apanhamos, mas continuamos surpreendidos pelo à vontade, confiança e entrosamento que conseguem demonstrar em palco – apesar do primeiro disco teimar em não sair, parece que já tocam juntos há uma dezena de anos! Enquanto isso, vão construindo um interessante fenómeno de culto, não só a julgar pelo considerável número de visualizações e audições nas plataformas digitais, como sobretudo pela entrega dos seus fãs que mostram saber as letras de cor e que puxam pelos rapazes ao estilo das claques de futebol.
Para quem (ainda) não ouviu, o som dos Má Vizinhança parece assente numa sólida base rock – que tanto pisca o olho ao peso de uns Alice in Chains como ao virtuosismo e jogo de guitarras do melhor Hard Rock – aliada ao pulsar vibrante de uma secção rítmica convincente. Ainda que não seja difícil de decifrar as influências, a banda mastiga-as de uma forma muito própria, o que para o qual muito contribuem as letras em português e a entrega do vocalista Kyra! Aliás, e na nossa opinião, os Má Vizinhança tornam-se particularmente interessantes e originais quando conseguem integrar a veia poética e performativa de Kyra – provavelmente originária do seu lado rapper – em canções como “Passaporte Ucraniano” e, principalmente, “Até te cai o cabelo” em que a frase “Só vim buscar o que é meu!” se entranha em nós pela sua visceralidade. E não, o resultado não converge com mais uma forma de rap, funk ou nu metal! É, arriscamos, uma identidade própria que caberá a estes 5 rapazes do Barreiro ir burilando, porque o que é preciso – a técnica e a força, como diria o outro – já lá está!
Kyra acaba o concerto estendido no chão … e notam-se os sinais de exaustão na banda. Eles deram o litro em palco, mas parece-nos que o cansaço virá mais de todo o esforço que foi necessário para levar colocar em pé este primeiro Átona Fest! E, neste campo, a organização está de parabéns: o tempo entre as bandas mal deu para repor as diversas fontes de energia, e o som e a iluminação imaculadas.
Ao longo destes últimos tempos temos tido a sorte de contactar com pequenas aldeias gaulesas que teimam em resistir ao império da cultura(?) de massas e à apatia. Bem haja os Astérixes e Obelixes deste país como os Má Vizinhança e os Penicheiros.
Parabéns pelo artigo. Muito bem escrito e boa revisão do evento e das performances!
Estive presente e fico contente em ler que ainda há repórteres preocupados em descrever os eventos de forma simultaneamente honesta e inspiradora. Foi a primeira vez que vi as bandas presentes e não posso não referir que o evento contou realmente com atuações fantásticas, de destacar as últimas duas bandas da noite, Wildchains e Má Vizinhança! Desejo muita sorte às duas!
Brilhante
Fiquei com tanta vontade de ter lá estado!!! Artigo super-bem-escrito-e-inspirado, que nos transporta para os Penicheiros e para o retorno à musica ao vivo. Bem haja o autor!