Numa berma de estrada algures em nenhures, pés trôpegos do álcool e da transpiração balbuciam algo que quer ser um caminhar. Algo que quer chegar a casa depois de uma noite longa. Botas de cabedal. Calças de ganga. T-shirt branca. Casaco de cabedal. Rasgões, nódoas e tabaco.
Um “bom-dia” que escapa por entre lábios secos de sono e ronha. Nos primeiros passos do dia a fome é quem mais sofre: uma taça de cereais com leite e uma fatia de pão de forma a seco. Pés descalços. Pernas lingrinhas. Boxers queimados de detergente. T-shirt qualquer, com um logo qualquer, de um evento não muito importante qualquer. Ramelas, bedum e cabelo de cama.
A noite começou à tarde: na sala de concertos os cabos ligavam-se e as guitarras eram afinadas. Para cortar o nervoso uma cerveja, duas, cigarro para cá, cigarro para lá, tudo numa coreografia atrapalhada e desconexa. Todos na sala para além deles estavam desconfiados, esgrimiam olhares esquivos como quem guarda o que não quer que lhe roubem. Era o seu primeiro concerto.
Os pais não sabem de nada. Dormir na sala de ensaios com o pessoal é na verdade dormir na casa que têm a sorte de ser a dela. Linda. De cuecas e camisola, mais nada. Ainda está na cama, a ouvir os cereais dele a rachar o silêncio da manhã que já é tarde. Sorri, entre os braços que se espreguiçam, o corpo que se contorce… sorri. Na inocência adolescente que gosta de se fazer de forte, sorri.
A bateria está abandonada, sem dono. Desapareceu e ninguém sabe dele. Insultos voam, canecas são atiradas e nada. Filho da puta, onde é que te meteste. É preciso afinar o som, deslizar botões para cima e para baixo, fazer luzinhas piscar…. Tudo atrasado. Ainda por cima já não falta muito para as portas abrirem. Na sofreguidão alarve dos seus 21 anos foi atrás da miúda que estava a servir ao balcão e a despensa da cozinha foi cama… balcão, sofá e banco de trás. Mas pronto, problema resolvido, já o descobriu. Vamos lá por isto a funcionar.
De volta e de barriga saciada, sente o frio da tijoleira a provocar os pelos das pernas que se eriçam antes de parar à porta do quarto. Emoldurado pela ombreira bafienta fica a olhar para ela. Como seria possível alguma vez uma coisa daquelas ter feito parte de uma discussão tão feia. Na noite anterior, quando a noite o embrulhava em vadiagem e cheiro a suor, chegou a casa com ela à espera, sisuda mas de uma maneira enternecedora. Ele viu-a e só quis sorrir e dar-lhe um beijo. Estalo. Estalo foi a recompensa por a ter deixado sozinha à porta do backstage. Fartou-se e veio para casa, ela e a vontade de o chutar e chamar nomes. Trocam acusações, gritam, maltratam-se mas acabam por adormecer. Na mesma cama mas como se não fosse, quase. Esforçando-se para que ele não note o choro abafado, fechou os olhos.
Os holofotes já aquecem a madeira das baquetas, o aço das guitarras. Tudo em exposição, no palco, com uma muralha de caras e olhos para tomar conta. O casaco de cabedal faz suar ainda mais do que só as botas fazem. Suor de nervoso mistura-se com o de calor e ambos descem pelo meio das costas. Todos estão assim, mas está na hora: como que empurrados por uma mão invisível, sobem as escadas que dão ao palco e deixam as luzes cegar o medo que lhes ocupa a cabeça. “ E um, dois, três e…” Já está. A bateria começa quase sempre primeiro, as guitarras alternam entre escalas simples, no início, que vão ganhando proteína. O baixo saltita e a voz junta tudo. A voz dele. Cola as notas soltas que pareceriam abandonadas se ele não lá estivesse. Jovem mas já rodada, baça, com o sotaque que torna tudo ainda mais violento. “Brianstorm” abre a rasgar dando ordem de largada aos saltos e ao tímido moche que se forma junto à coluna. Ambiente elétrico, pesado, húmido mas vivo. Com “Teddy Picker” o rock ganha mais salero, fica mais dançante. Sempre muito pintas, muito estiloso quase sem saber, beberica uma cerveja já morta, de certeza, e dá umas passas enquanto o solo rouba a ribalta. O ritmo vai abrandando sem fraquejar, “D is for Dangerous”, carregado de eco na voz e com o mesmo cheiro a óleo de motor e brilhantina faz-se ouvir. Passam músicas e mais músicas e todos vibram, eles incluídos. O nervoso já lá vai, agora transborda-se uma confiança meio embriagada. Tudo flui como se alguém tivesse escrito há milénios que seria essa a forma que tudo se devia fundir. Semi-perfeição por mãos ossudas e caras com acne. Mas chegamos a “Only Ones Who Know”e o olhar pára na cara dela. Os seus olhos cheios, gritam por ele, o cabelo castanho, comprido e ligeiramente encaracolado vai deslizando pelas mãos dela, que o puxa para cima, tentando aproveitar a brisa ténue que vem da porta. A guitarra dele faz música deslizar pelo ar com a subtileza de quem dá um beijo, mordisca um lábio. Ele está no palco mas na realidade não está: flutuou para o lado dela. É mesmo aquilo. Ele sabe que é dela, mas naquela noite, tem de ser deles, os que estão a gritar, doidos. Salta uma mudança e volta a arranjar a todo o gás. Em alta velocidade segue o resto do concerto, sem parar um segundo, sem parar até ver os “Old Yellow Bricks” que ditam o fim da viagem. E que viagem.
Com as nuvens pesadas que os seus gritos formaram, o quarto fica frio. A luz do despertador incendeia o teto já chamuscado pelas palavras que atiraram – “Talvez mandar-te para o caralho seja demasiado gentil!” , “Faz-me um favor e pede-me só para ir embora!”. Agora são 5:05 da manhã, o dia começa a ameaçar correr com a noite e o quarto carrega o peso da consciência dos dois. A adolescência é assim: transforma pessoas em hipérboles, faz discursos ditos por este ou por aquele mas assinados por hormonas e complexos idiotas. De heróis a vilões num abrir e fechar de olhos. Mas ser adolescente e hiperbólico também é gostar, é ficar cego por alguém ou por alguma coisa, defender e protegê-la com tudo o que à distância de uma mão estiver. E mesmo ao lado dele estava ela. Não estava a sete horas de avião, nem muito menos a 45 minutos de carro. Estava ali, com as mãos entre as coxas, como se estivesse à espera que ele chegasse. Num abraço deitado ficaram a dormir.
Rasgões, nódoas e tabaco. Ramelas, bedum e cabelo de cama. Esta é a vida deles. Esta é a vida dos que, como eles, sentem a emoção de viver em taquicardia constante. Viver numa dualidade esquizofrénica que junta o mais violento ao mais doce, o mais fanfarrão ao mais simples. É isso que faz desta fase da vida o nosso “Favourite Worst Nightmare”.