E o que vejo a cada momento
É aquilo que nunca antes eu tinha visto,
E eu sei dar por isso muito bem…
Sei ter o pasmo essencial
Que tem uma criança se, ao nascer,
Reparasse que nascera deveras…
Sinto-me nascido a cada momento
Para a eterna novidade do Mundo…
–II, Alberto Caeiro
O espanto e o arrebatamento fazem parte do mundo da música. Ficaram-me na memória os dias em que descobri o álbum My Favourite Things do John Coltrane, a primeira vez que notei no bocejo em “I’m Only Sleeping” Beatles – o pormenor que faz desta uma das melhores canções de Revolver – ou quando a “Master of Puppets” me mostrou o poder de um riff de uma guitarra eléctrica. E foi na procura por esse sentimento de arrebatamento face à novidade que fui para o concerto de Anohni sem ter ouvido uma única música da artista.
Mudei de rádio sempre que ouvia uma voz parecida com a de Antony Hegarty, não deixei o meu pai ouvir o álbum durante as poucas horas em que paro em casa e não li nada sobre o disco, nem nenhuma das entrevistas que a artista concedeu a, aparentemente, todos os jornais do mundo.
Quando me sentei na cadeira do Coliseu estava a ser projetado um vídeo de Naomi Campbell a dançar ao som de sons industriais. Este vídeo conceptual prolongou-se por meia hora, até que todas as luzes do palco se apagam e a cara da modelo é substituída por uma nova face feminina, com a cara pintada de branco e apontamentos vermelhos a escorrer a partir do cabelo como se fosse sangue e auréolas pretas à volta dos olhos.
E é com este comentário à violência contra as mulheres que começa a cerimónia de Anohni.
Ao longo da hora seguinte desfilaram músicas, provavelmente do disco (lembrem-se, ainda nunca o tinha ouvido, não fazia ideia quais as músicas que constituem o primeiro disco da artista). Sempre a acompanhar as canções, um vídeo de mulheres a “entoar” as letras. De cada lado do palco, um músico, com uma mesa de mistura à frente.
Não há grandes momentos sinfónicos, como aqueles que vimos um tal de Antony dar a 5 de junho de 2015, no Porto. Apenas duas pessoas a estabelecer a base instrumental e uma mulher vestida de branco e com uma rede preta frente à cara, a cantar com uma voz delicodoce que deixou centenas de pessoas em êxtase.
Enquanto Anohni canta e os outros dois músicos estabelecem bases musicais, parece que acaba o oxigénio. Ninguém grita, ninguém canta, não batem palmas, nem assobiam. Alguns abanam a cabeça, mas todo o ambiente é de cerimónia, onde o júbilo chega sempre no fim das canções, com extrema exultação. O público percebeu e respeitou o ambiente do concerto de uma forma sublime e esse facto merece sempre uma referência.
Anohni celebrou uma liturgia eletrónica, repleta de mensagens, mas sem nenhum comentário. Não era preciso. As caras projetadas e as letras diziam tudo. O comentário político é forte e sendo uma mulher branca, a cantora não se inibe de tentar transmitir a mesma mensagem veiculada por Malcom X: “The most disrespected person in America is the Black woman, the most unprotected person in America is the Black woman. The most neglected person in America is the Black woman.” Anohni não o disse mas tentou mostrar que esta condição ainda existe, só que não se restringe apenas à América, é mundial.
Não houve comentários durante a sua atuação. Não foi preciso. Ficou tudo dito. Anohni é uma revelação, uma defensora dos direitos humanos e ergueu um novo monumento musical: a canção de protesto electrónica.
No final do concerto, senti-me acordado para a eterna novidade daquela pessoa. Tive o “pasmo essencial” de me aperceber do nascimento de uma nova força, a de Anohni, uma mensageira litúrgica da igualdade.
fotos de e gentilmente cedidas por José Octávio Peixoto