É tão bom voltar a ouvir um disco de música brasileira sem marcas extremas de modernismo na sua produção, nos arranjos, nas composições. Por via dessa aposta mais crua, o tom geral que o álbum nos oferece é o de uma autêntica dádiva sonora! É tão bom voltar a sentir a música como se ela fosse depurada, tornada osso, reduzida ao brilho da sua essência. Há quanto tempo não ouvia eu um disco assim, meu Deus?! Há muito, seguramente. Há tanto que já não encontro outra resposta senão esta: há demasiado! Finalmente, para que o ano presente pudesse terminar em grande, chegou-me aos ouvidos (mas não às mãos, infelizmente) uma singular pérola sonora, daquelas que não poderemos nunca deixar de agradecer o simples facto de existir. E é por aí que quero começar: obrigado, Ana Cláudia Lomelino! Sim, falo diretamente para si: o seu primeiro disco a solo, Mãeana, é um verdadeiro oásis de bom gosto, um imenso lençol de paz, de serenidade, e de tantas outras coisas que venho descobrindo a cada nova audição. Parece que foi feito para mim, passe o exagero egotista da expressão, mas é mesmo isso que sinto, e como bem sabemos, os sentimentos são sempre anteriores às palavras… Não há como fugir a essa consciência íntima. Por isso, insisto e repito: obrigado, Ana Cláudia Lomelino!
Mãeana tem muito para nos oferecer. Desde logo, e julgo ser esse um dos seus principais atributos, o disco é muito maternal. Tem esse desvelo afetivo que só as mães sabem proporcionar. Mãeana é tão prazeroso, tão bonito, uma delicada carícia sonora que sentimos percorrer o nosso corpo por inteiro. É um disco que nos dá colo, mesmo a nós que sofremos desse padecimento temporal que nos afasta da infância, embora estejamos ainda distantes da velhice. Talvez por isso me pareça um disco tão adulto, tão seguro, tão grandioso!
O primeiro contacto com Mãeana chegou-me via “Não Sei Amar”, e ao ouvir o que Ana canta, percebi que caetanear é um verbo que lhe assenta muito bem. Para mim, que tenho Caetano como o maior dos maiores mestres da música brasileira, esse é o máximo elogio que posso fazer a alguém. No entanto, Ana Cláudia Lomelino revela-se muito para além desse facto. Tem identidade vincada, sabe o que quer e para onde vai, e assim este disco pode ser entendido como uma viagem a vários sítios, épocas, sons que se cruzam em perfeita harmonia (tropicalismo, pós-tropicalismo, bossa, samba) rumo a lugares passados e futuros, rumo ao infinito musical que é (e sempre foi) a música do nosso país irmão. Em catorze canções, Mãeana entrega ao ouvinte o prazer de se poder estar perante uma obra honesta, resgatando essa indefinida e maravilhosa sensação de saudade, essa lembrança tão grata quanto nostálgica do tempo em que os álbuns dos meus artistas brasileiros preferidos eram verdadeiramente históricos. O mesmo é dizer, como facilmente se perceberá, que Mãeana está bem dentro desse supremo lote de álbuns. É história viva, um monumento sonoro bem enraizado no passado que o sustenta, mas suficientemente capaz de se projetar num futuro particular e risonho. Tem, para o efeito, não só a competência da artista, como a bênção de Yemanjá (“Conchinha”). A par disso, Ana Cláudia Lomelino soube juntar um ótimo lote de gente para a edificação do seu primeiro longa duração em nome próprio. São vários, e muito bons. Desde logo o já referido Caetano Veloso, mas também Adriana Calcanhotto (“Bem Feito”), Domenico Lancelotti (“Pérola Poesia”) ou Marcelo Callado (“Minha Cama”), bem como de outros músicos da mais fina e atual cena carioca (Pedro Sá, Berna Ceppas, Bruno Di Lullo ou Bem Gil).
Mãeana vai ajudar-me a passar o inverno que se avizinha com menos arrepios no corpo. Vai curar-me as neuras que invariavelmente sinto durante esses largos meses de tempo cinzento e chuvoso. Sempre que o puser a tocar, Mãeana saberá dizer-me ao ouvido tudo aquilo que gosto de ouvir.
Muito boa a resenha,uma das melhores,vou procurar o álbum da cantora para ouvir melhor.
No Brasil o ‘tempo chuvoso’ é no verão,morro de medo de chuva,rs.