O Algarve não é um desterro. Para lá das laranjas, da alfarroba e dos turistas ingleses há um crescente fervilhar cultural que tem vindo a aumentar. No mundo das artes plásticas, da escrita, da representação, da dança e, claro, da música. Os Tribruto são um conjunto de três rapazes – RealPunch (25 anos), Kristóman (28) e GI Joe (32) – que estão na vanguarda desta pujança cultural que se quer bem forte e viçosa. Assim, fortes e viçosos, estes rapazes têm vindo a trilhar o seu percurso, desde 2010 – ano em que lançaram o seu primeiro álbum, Algazarra, para hoje se apresentarem com o seu segundo rebento, Chavascal. Sem medos nem constrangimentos, este álbum “cospe” humor, intervenção e alguma dose de disparates (que não caem em fundo roto, de maneira nenhuma) que torna a audição uma experiência rica, directa, e sem grande termo de comparação com outros artistas que trabalhem dentro do mesmo género musical – o Hip-hop.
Na eminência da sua actuação, dia 12 de Março, no Lux, fique a conhecer um pouco melhor de quem são estes rapazes que vêm “from the land down under” – e não é a austrália, môces – e que não fazem a menor cerimónia quando é preciso partir a loiça toda. O Mr. Milk agradece-vos a conversa, e lá estará para cantar. “Mr. Brown nigga, Mr. Brown nigga….”
Como nasceram os Tribruto?
GI Joe: Os Tribruto nasceram no palco, basicamente. Eu andava a tocar pelo Algarve e costumava levar comigo artistas da Kimahera para actuar comigo. Eles como estavam a solo acabavam por participar várias vezes comigo. Vimos que funcionava bem e assim ficámos.
Kristóman: Acho que o concerto em que melhor nos apercebemos de que tínhamos pernas para andar foi em Sintra, num evento promovido pela H2tuga. Tivemos um bom concerto e na vinda para baixo, começamos a pensar que como passámos, em pouco tempo, de concertos pequenos para coisas maiores, devíamos continuar a apostar neste formato.
RealPunch: E o nosso objectivo original sempre foi fazer sons para podermos tocar ao vivo, e em grupo isso era muito mais fácil. Fazia todo o sentido mantermo-nos os três juntos.
E porque o nome Tribruto?
GI Joe: Basicamente porque somos três brutos… [risos]
E o que é a Kimahera?
RealPunch: A Kimahera é uma editora, grupo, família algarvia. Basicamente é um selo independente que temos lá em baixo que nos apoia em praticamente tudo.
GI Joe: A Kimahera surgiu há alguns anos enquanto estúdio. A partir do meu primeiro trabalho físico com eles as coisas foram crescendo, o leque de artistas com que trabalhamos aumentou e agora somos praticamente independentes a fazer tudo. Desde vídeo a foto, a concertos, técnicos de som…
RealPunch: Hoje acho que a Kimahera ganhou um estatuto em que automaticamente, quando vês alguma coisa ligada a esse nome, sabes logo que é algo com qualidade, ou que se preocupa em ter qualidade.
Mas antes de tudo isso: como é que o hip-hop entrou no vosso dia-a-dia?
Kristóman: No meu caso acho que foi em 2004, mais ou menos. Foi com o som “Lei das Ruas” – ouvi aquilo e fiquei tipo “Eh pá eu gosto de rap!”. No início ouvia só rap do norte, só depois é que comecei a ouvir mais Sam the Kid, Regula, Valete também. Aí nasceu o bichinho do rap mais a sério. Depois comecei logo com freestyles na escola.
RealPunch: Eu comecei no ciclo. Já ouvia alguma coisa por influência de familiares, coisas dentro do Nu-Metal. Depois comecei para evoluir para outro género de estilos, tipo Chullage ou Xeg. O primeiro som de hip-hop português que ouvi mais a sério foi o “Vaca de Merda”. Lembro-me que da primeira vez que ouvi fiquei logo tipo “Wow!”. Era uma coisa completamente diferente do que todos estávamos habituados, era um som totalmente sem limites, sem barreiras nenhumas. Depois, devido a um colega meu da minha turma, ele tinha família em Lisboa e através deles começamos a ouvir Sam [the Kid]. Não tardou muito para começarmos a pensar em escrever as nossas rimas. Juntávamos-nos a escrever, sem instrumentais nem nada – tudo muito random. Eu continuei sempre com isso, apesar de muitos dos que começaram comigo acabarem por desistir – chegou a idade da adolescência e eles queriam era gajas. Eu continuei a rimar, a pesquisar coisas novas, sempre a vasculhar. Na altura era difícil conhecer coisas novas, só quando abriu a Valentim Carvalho no Algarve Shopping é que ficou mais fácil. Foi esta a altura em que se deu o meu boom pessoal no que a fazer hip-hop diz respeito. Depois disso, o momento mais marcante neste meu percurso foi quando o Dezze, que também é um artista da Kimahera), convidou-me para participar no projeto dele, o Atmosfera Hostil (isto em 2005, tinha eu uns 15 anos).
GI Joe: o meu percurso foi um bocado diferente, eu comecei a ouvir muito hip-hop internacional principalmente porque andava de patins a um nível de competição já avançado. Consumíamos muito os filmes que vinham de fora que usavam músicas de hip-hop underground. A partir daí comecei a conhecer muitos artistas dos Estados Unidos. Com o tempo e já depois de ouvir muita coisa, começou a chamar-me mais à atenção a parte dos scratchs. Algum tempo depois de começar a tomar mais atenção a isso vim a Lisboa, à Godzilla (no primeiro andar tinham a parte dos discos) e lembro-me de pedir ao Mr. Cheeks um CD de scratch. Ele ficou a olhar para mim sem perceber o que se passava – “Querias um vinil para fazer scratch?”, “Não, queria um cd onde pudesse ouvir scratch.” E ele lá percebeu e deu-me The X-Ecutioners, o primeiro álbum deles. A partir daí foi começar a juntar dinheiro para comprar os meus pratos e comecei a produzir – sem ninguém nunca me explicar como se fazia. Fui muito autodidata e isso atrasa sempre um bocado, mas o facto de ter uma loja, onde comecei a vender mixtapes, por exemplo, e por aos poucos me ter tornado quase o único DJ do Algarve, fui conhecendo muita gente até que fiz um grupo, com amigos meus dos patins. O meu primeiro trabalho juntou vários artistas do Algarve e a partir daí as coisas foram se solidificando.
Acham que se a vossa história se tivesse passado em Lisboa ou no Porto em vez de no Algarve teria sido diferente?
Kristóman: Acho que seria, sim. Possivelmente teríamos seguido carreiras a solo. O facto de termos começado lá em baixo fez com que nos tornássemos mais unidos.
GI Joe: Não parecendo, a distância é um factor determinante porque em Lisboa e no Porto, as coisas são todas mais perto umas das outras – o bairro X e o bairro Y, por exemplo. Lá em baixo não, se for preciso estamos quase a 60 quilómetros de distância uns dos outros…
RealPunch: Sim, nós vivemos sempre em sítios separados.
GI Joe: E teve sempre de haver um esforço para conseguir fazer as coisas acontecer.
E qual é a principal diferença (se é que conseguem destacar alguma coisa) entre o vosso primeiro álbum, o Algazarra, e o mais recente, Chavascal?
RealPunch: Acho que evoluiu tudo, completamente.
Kristóman: Sim, sem dúvida. Rimas e instrumentais, felling, tudo isso cresceu. Nota-se que estamos a entrar nos sons muito melhor, que aquela é realmente a nossa praia.
GI Joe: Acho que podíamos facilmente ter caído no erro de pegar só nas coisas do Algazarra que funcionaram bem e replicá-las noutro álbum, mas não. Pensámos bem e decidimos que vamos fazer como nos apetecer e como nos der na gana. Fazemos o que nos apetece, sempre tendo em conta aquilo que aprendemos nos quatro anos que passaram entre um álbum e outro.
Acham que o que o Joe dizia sobre “fazerem o que vos apetece” é um luxo que muitas outras bandas não conseguem ter?
Kristóman: Acho que há muitas que não fazem porque não querem…. Acho… a menos que tenhas uma editora que te limite ou que te prenda. Caso contrário, bandas independentes só não fazem o que lhes apetece se não quiserem.
GI Joe: Acho que o Kristo tocou num assunto muito importante. Hoje em dia muita gente tem medo de ser o primeiro a arriscar, a fazer algo de diferente. Muitos queixam-se de que não conseguem vingar mas depois também não são capazes de fazer algo de diferente. E claro, o público sofre com isso.
Kristóman: Aliás, o hip-hop está a sofrer com isso! Conheço pessoal que cresceu comigo, a gostar de hip-hop, e hoje já não têm paciência. Desinteressaram-se completamente. Quando tens 50 gajos, todos a fazer coisas muito parecidas ou iguais, é natural que as pessoas se cansem. Fica tudo estagnado.
RealPunch: Muita gente tem medo porque acham “Ah, acertei neste registo, neste tipo de música, por isso vou continuar a gastar os trunfos todos”. Nós não. Nós ouvimos os instrumentais que o Joe nos passa e escrevemos ou então são coisas que surgem de improviso, como o Mexe a Banha, por exemplo. Como o papel do improviso está muito presente, é natural que os nossos temas sejam baseados em coisas sobre as quais nos apetece falar naquela altura.
Com a quantidade de novos músicos de hip-hop que começam a aparecer, acham que pode estar a chegar uma nova “era dourada”?
Kristóman: Tribruto, só por si, já é uma golden age [risos] mas agora a falar mais a sério, acho que em nós, em Portugal, criámos um estilo. Não me quero intitular como criador de algo mas acho sinceramente que criámos algo de novo. Vá, ao menos mostrámos um Rap desinibido. Mas voltando á tua pergunta acho que uma coisa é certa, começas a ver mais estilos novos, Mc’s com identidades frescas, originais.
GI Joe: Mas daí a haver uma nova #era dourada#, não sei. Lá fora não está a acontecer. A nível de vendas, tenho ideia que está um pouco estagnado. Alto, mas um pouco parado. Não está num boom, mas está estável. O nacional deverá caminhar para o mesmo, com a diferença de que é a uma escala completamente diferente.
E o que têm andado a ouvir de rappers estrangeiros?
Real Punch: Tenho ouvido muito Trinidad James, por exemplo, mas a última coisa à qual me colei mesmo foi o álbum mais recente do Lupe Fiasco.
GI Joe: De rap tenho ouvido o novo EP de Aesop Rock e o Mick Jenkins…
Kristóman: O Joey Badass também…
RealPunch: o Pinãta do Freddie Gibbs e do Madlib também está muita bom. A mistura do Madlib meio nerd dos pratos com o Gibbs que é bué gangsta fica muita bem.
Para quem oiça o Chavascal pela primeira vez, o que podem esperar?
Kristóman: Eu vendi um CD ao meu gestor de conta, lá em baixo, um tipo de 40 anos. Ele acompanha hip-hop há muitos anos e diz que quando ouviu o Chavascal pela primeira vez ficou chocado porque não sabia que havia este tipo de rap em Portugal. Este género de opinião é muito importante porque mostra-nos que apesar de as pessoas, ao início, poderem estranhar, depois gostam. Mas de um modo geral acho que está um álbum cómico, quase javardo [risos]
GI Joe: Isto pode parecer redundante, mas acho que a melhor palavra para o descrever é mesmo chavascal. Vocês ouvem e percebem que é mesmo um chavascal que para ali vai.
RealPunch: Acho que a melhor maneira de perceberem o que é este álbum é mesmo carregando no play e ouvi-lo de mente aberta. Tudo pode acontecer.
Vocês contaram com várias participações neste trabalho (Capicua, Sam the Kid, Valete, por exemplo). Como é que elas surgiram?
GI Joe: Foi pessoal com quem nos fomos cruzando por concertos e que, em conversa, fomos percebendo que se identificavam com o que fazíamos. Quando estávamos a fazer as faixas íamos percebendo que aqui ou ali esta ou aquela pessoa faziam sentido em entrar. Mostrávamos-lhes a faixa e se eles curtissem, entravam.
Kristóman: A participação do Mr. U (Rui Unas) teve um sabor especial. Ele é mesmo fã do nosso trabalho e nós, claro, do dele.
E planos para o futuro?
Kristóman: Queremos desfrutar ao máximo deste álbum…
GI Joe: Continuar a apostar em videoclips e apostar em concertos ao vivo.