Nunca o recinto do Parque da Bela Vista terá estado assim. Cerca de 90 mil pessoas (ou terão sido ainda mais?) estiveram presentes para presenciarem uma noite histórica e que dificilmente se repetirá. Os Rolling Stones estiverem pela quinta vez em Portugal nestes já cinquenta anos de carreira. Cinquenta anos de carreira! A julgar pela média, se voltarem daqui a 10 anos, Mick Jagger e Keith Richards terão ambos 80 anos. Embora pelo que ontem pudemos assistir, não parece nada que têm 70.
Mick Jagger é provavelmente – provavelmente não, é mesmo – o tipo mais cool do planeta. É o tipo mais carismático dos 7 biliões que habitamos a Terra. Vê-lo ao vivo, nem que seja através dos vários ecrãs colocados pelo recinto do festival, é algo difícil de acreditar. E o mesmo se pode dizer obviamente de Keith Richards, Ronnie Wood e Charlie Watts. Faz-nos pensar: e se, para além dos Rolling Stones, os Beatles ainda estivessem juntos? E os Pink Floyd? E se Freddie Mercury ainda dominasse o mundo? Assistir a estes momentos raros e históricos é justificar muito mais do que o preço dum bilhete. Vai connosco para a cova e para o além.
E se por si só ver Rolling Stones já era alegria mais que suficiente, eis que à quarta música Jagger resolve chamar ao palco o convidado especial da noite: o Boss, o verdadeiro, Bruce Springsteen. Certo que Springsteen esteve cá há dois anos a pisar aquele mesmo palco em nome próprio. Mas juntar duas lendas vivas no mesmo palco a tocar juntas era algo que ninguém (ou praticamente ninguém) estaria à espera. O Boss foi chamado ao palco para tocar “Tumbling Dice” e com a sua voz rouca e calcada por anos ao serviço do Rock N’Roll iluminou ainda mais um palco que já era o centro do mundo. Não há muito como descrever momentos mágicos como estes. Foi efectivamente necessário conseguir ver com os nossos próprios olhos para acreditar que estava a acontecer. Muitos eram aqueles que não estavam a acreditar quando Jagger chamou por Springsteen, como se fosse exequível não acreditar na palavra dele. Mas de facto só se acreditou quando o Boss apareceu no encalce dos nossos olhos.
E não foi o único a ser convidado. Gary Clark Jr., que tinha actuado logo antes, também foi presenteado com a oportunidade de trocar uns acordes ao lado destes dinossauros. Foi chamado para tocar “Respectable” e era visível a emoção que sentia. Clark olhava intermitentemente ora para Jagger ora para Richards. Estava nitidamente a viver um sonho, daqueles impossíveis de concretizar, mas que ontem, concretizou-se mesmo. Esteve impecável. Se é quase certo que devia estar a tremer por dentro (quem não estaria?), não falhou uma nota e abrilhantou-se.
Quem também subiu ao palco para se juntar aos Stones foi Mick Taylor. O guitarrista, membro efectivo da banda entre 1969 e 1974 é considerado por muitos dos mais acérrimos aficionados como provavelmente o melhor guitarrista que lá passou, tecnicamente falando. Tem estado presente nas digressões, como a 50 & Counting e esta 14 On Fire, que se lhe segue, para tocar uma ou outra música. Ontem foi em “Midnight Rambler” e na última “(I Can’t Get No) Satisfaction”, completamente apoteótica. Um regalo, cereja no topo do melhor bolo de sempre.
Este foi o segundo concerto dos Rolling Stones, desta digressão intitulada 14 On Fire, depois do interregno provocado pelo suicídio da namorada de Jagger, em Março passado. O primeiro foi segunda-feira passada na Noruega e muitos tentavam adivinhar o alinhamento provável. Uma banda com mais de 50 anos de carreira poderia dar-se ao luxo de apresentar uns quatro alinhamentos magníficos sem repetir uma única canção mas há sempre músicas que não podem faltar. “Start Me Up”, “Sympathy For the Devil”, “Jumping Jack Flash” ou “(I Can’t Get No) Satisfaction” não poderiam faltar nunca, mas se faltassem porque tocariam, por exemplo, “Paint It Black” ou “Angie” (não tocadas ontem) ninguém repararia. O momento é bom demais para deixar espaço a haver sequer alguma pontinha de desilusão e o luxo de se poder deixar músicas como essas de fora é apenas possível para extraterrestres. Começar com “Jumping Jack Flash” é imenso. Aliás, correcção. O concerto começa com uma voz de sotaque românticamente british a anunciar: “Ladies and Gentlemen, The Rolling Stoooooones!!!”. E depois sim, alguns segundos da percursão de “Sympathy For the Devil” e depois sim, com a entrada da banda, os primeiros acordes de “Jumping Jack Flash”.
Com os tais mais de cinquenta anos de carreira, o alinhamento não poderia deixar de incidir sobre uma carreira de canções. Músicas que mudaram o mundo nos anos 60 como “Gimme Shelter”, “Midnight Rambler” ou “Honky Tonk Women” fizeram as delícias dos mais de 90 mil espectadores. Com esta “Honky Tonk Women” Jagger aproveitou para apresentar a banda, um a um, que visivelmente felizes deram uma volta no palco. O vocalista, que falou praticamente sempre em português entre as músicas, aproveitou para gozar com Charlie Watts e perguntar “Mas onde compraste esses sapatos?”.
Uma banda de septuagenários tem forçosamente de saber gerir a energia que emprega em palco (embora não se perceba como Jagger consegue saltitar – sim, porque ele quase não anda, saltita (mas sempre da forma mais cool) durante duas horas). Assim aproveitou Jagger para fazer uma mini-pausa de duas canções que Keith Richards assumiu na perfeição, “You Got the Silver” e “Can’t Be Seen”. Foi uma noite inesquecível, ficará para sempre na nossa memória. (alinhamento mais abaixo).
Os Rolling Stones não foram, como se sabe, a única banda a actuar ontem. A noite começou no Palco Mundo com Rui Veloso a partilhar o palco com o brasileiro Lenine e a beninense Angélique Kidjo. Concerto próprio de aquecimento, serviu para começar a entrar na onda festivaleira. Se Angélique animou as hostes interpretando temas como “Redemption Song” de Bob Marley e “Voodoo Child” do mestre Hendrix, foi mesmo Rui Veloso com o seu personagem mais antigo “Chico Fininho” que arrancou os maiores movimentos de anca naquela hora.
Logo antes dos Stones, tocou Gary Clark Jr.
Basta ouvir as letras. São tipos com azar os bluesmen. Traídos pelo homem do leite, perdidos entre “scotch, bourbon and beer”, sempre falidos e na maioria das vezes a caminhar, sozinhos, do lado errado da pista. Ainda assim, o encanto é tal que a lenda diz que já houve quem fizesse pactos com o diabo para conseguir dominar os verdadeiros Blues. Daqui, garanto que estão por confirmar os boatos que garantem que Gary Clark Jr, vendeu a sua alma.
A receita não é fácil. A técnica é o que menos interessa, o caminho não permite grandes desvios e chegar a primeiro depende de factores que poucos dominam. Há quem insista durante anos, às vezes até com um sucesso ou outro, um ou outro concerto esgotado, em verdadeiras maratonas pelo braço da guitarra e sempre com muita nota esticada, mas nunca chegue a Bluesman. Perguntem ao Gary Moore. Mas também há quem acerte à primeira, em cheio no filão, para destapar todos os seus segredos e chegar ao trono por onde já passaram Jonhson, Waters, King, Clapton ou Wolf. Um trono enguiçado, alvo dos mais perigosos voodoos e dos mais violentos ataques. Perguntem ao Jack White o que acha do Gary Clark Jr.
Tem a técnica dos melhores e o carisma que destrói a credibilidade de muitos candidatos – não ler aqui qualquer provocação ao John Mayer. Num género em que uivar à meia-noite é perfeitamente aceitável, a voz também é de um nível raro. E no currículo, apenas um desrespeito ao manual de etiqueta dos Blues – ainda antes de editado o primeiro disco, vendeu uma música para publicidade. Pecado mortal? Nos Blues os pecados cantam-se, não matam. E Gary Clark Jr, canta e toca como poucos.
Texano, cedo foi apadrinhado pela realeza – em 2010 já Eric Clapton o incluía no Crossroads –, cedo tocou para ela – ver o dueto com Shemekia Copeland na Casa Branca – mas continua sob a maldição que marca os verdadeiros Bluesmen. Na segunda visita a Portugal, Gary Clark Jr voltou a ter de a enfrentar.
Na estreia, há um ano no Meco, enfrentou os cabeças de cartaz Queens of the Stone Age e provou que merecia mais – não ler aqui qualquer provocação ao Josh Homme estar a tocar antes dos Linkin Park. Desta vez perdeu. Não que tenha tocado pouco ou que não tenha trazido armas de peso. A lembrá-Lo, abriu com “Catfish Blues”, seguiu para os originais – “Next Door Neighbour Blues”, “Ain’t Messin Around” –, não falhou qualquer single – “Don’t Owe You a Thang”, “Numb” e “Bright Lights” para fechar – e nunca facilitou. Cantou e tocou melhor que qualquer outro, mas não chegou.
Dizia Ele, que “Os Blues são fáceis de tocar, mas díficeis de sentir”. No Rock in Rio, Gary Clark Jr voltou a senti-los. É escusado tentar fugir à sua maldição, é escusado tentar enfrentar um público ansioso por cantar a “Jumpin Jack Flash”. Alguém se vai lembrar de quem tocou antes do Bruce Springsteen ter subido ao palco dos Rolling Stones? Alguém se vai lembrar dos elogios do Senhor Jagger ou de que também ele foi convidado ao palco para tocar a “Respectable”? É dura a vida de um homem dos Blues.
Antes, no palco secundário, tocaram os Triptides. Esta banda de Indiana, Estados Unidos, insere-se na perfeição nesta mais recente vaga psicadélica que reina na música alternativa de agora. Estavam na altura umas poucas cinquenta pessoas por lá, à espera de os ver mas à medida que o concerto foi decorrendo foi-se juntando cada vez mais gente, acabando o mesmo já bastante composto.
Os Triptides começaram com uma das suas músicas mais conhecidas, “Set You Free”. Uma muito boa canção que, juntamente com a última do alinhamento “Colours” se destacam das restantes. O concerto foi algo morno. Estes norte-americanos estão naquele lote de artistas que se dão melhor em estúdio do que em palco. Falta-lhes garra, pujança ou aquilo que Austin Powers lhe chama: mojo. A Glen Brigman, vocalista da banda, falta-lhe carisma. Falta-lhe power e apresentando-se com o seu cabelo à Simply Red, não ajuda lá muito.
Mas apesar de morno, podemos dizer que foi consistente. Já têm alguns álbuns na bagagem, como Predections ou Psychic Summer, mas são ainda uns miúdos a quem lhes falta alguma atitude.
No final dos Triptides já os Xutos & Pontapés estavam a rockar no Palco Mundo. Quando se iniciaram nestas andanças já os Rolling Stones levavam mais de 15 anos de carreira, mas os Xutos já levam também mais de 35. É obra. São os pais do rock português e a legião de fãs que têm e sempre tiveram é das mais fiéis que há para aí.
Faz parte do ADN de ser português ver Xutos ao vivo pelo menos uma vez e por mais que já se tenha visto mais do que uma dezena de vezes, não há como não acompanhar as letras da maioria das músicas. Clássicos como “Contentores”, “Maria” e “Casinha” saem sempre da nossa boca, mesmo que até nem queiramos cantá-los. Incontornáveis e merecedores do carinho dos portugueses.
Apresentaram-se em palco como sempre. Tim, Zé Pedro, Cabeleira e Kalú. Iguais a si próprios desde sempre, embora com os anos em cima a carregaram em muitas daquelas rugas. Quem não as tem? Mas é sempre bom de ver. Em particular o sempre rebelde Kalú, especialmente quando grita cavernosamente “Aiiiiiiiiiiiiiiiiii a minha vida”.
Percorreram muita carreira ali para um público que ainda teria Gary Clark Jr. Pela frente, mas que já tinha ganho seu lugar para os Rolling Stones.
Alinhamento The Rolling Stones:
1. Jumping Jack Flash
2. It’s Only Rock and Roll (But I Like It)
3. Live With Me
4. Tumbling Dice (com Bruce Springsteen)
5. Wild Horses
6. Doom and Gloom
7. Respectable (com Gary Clark Jr.)
8. Out of Control
9. Honky Tonk Women
10. You Got the Silver (Keith Richards a liderar)
11. Can’t Be Seen (Keith Richards a liderar)
12. Midnight Rambler (com Mick Taylor)
13. Miss You
14. Gimme Shelter
15. Start Me Up
16. Sympathy For the Devil
17. Brown Sugar
Encore
18. You Can’t Always Get What You Want (com o Coro Ricercare Ensemble)
19. (I Can’t Get No) Satisfaction (com Mick Taylor)
*Com Filipe Garcia