
Quem andou pelos festivais de Verão deste ano, sabe bem quem ela é. Ana Matos – ou Capicua -, 31 anos, sereia de nome (“capicua” significa “cabeça e cauda”) e louca de alma. Já por aí ainda desde 2004 mas só há dois anos é que a maioria começou a ouvir falar nela. No ano em que lançou o segundo álbum – Sereia Louca – e figurou na maioria dos cartazes de festivais, fomos perguntar-lhe, entre outras coisas, o porquê de estar onde está – e acabámos a falar de massa de pão, cupcakes e cassetes de ginástica:
Altamont: Apesar de teres começado a cantar há alguns anos, foi em 2012 que se começou a ouvir falar mais do teu nome. O que é que te trouxe até aqui?
Capicua: Foi progressivo. Faço rap de forma militante desde o final de 2004 e o percurso foi o normal de uma MC no underground. Fiz EPs em grupo, fiz mixtapes, participei no circuito de concertos, nas festas de hip-hop e em compilações e discos de outras pessoas dentro do “nicho” do hip-hop underground. Foi essa a minha escola.
Em 2012, acabei o meu primeiro LP, o primeiro trabalho a sério. Mandei-o para várias editoras mas foi o Henrique Amaro que decidiu editá-lo pela Optimus Discos, o que foi importante para mim: fez com que a minha música furasse para fora das fronteiras do hip-hop mais underground e chegasse a um público mais alargado. E fez com que também conseguisse promover a minha música no circuito mainstream de promoção e até de venda de discos, com todos os meus trabalhos para download gratuito em sites de hip-hop e no meu próprio.
Apesar de a editora permitir o download, o facto de o disco estar nas lojas e ter promoção nas revistas e nos jornais, de forma mais profissional, ajudou-me a chegar a todas as tribos urbanas. A partir daí, foi um percurso de grande abertura para um público mais abrangente. As pessoas aceitaram muito bem o disco, que teve boas críticas nos média, acabando por figurar em listas de melhores do ano. Isso deu-me oportunidade de criar expectativas para um segundo disco, que saiu este ano, já com uma editora major, a Valentim de Carvalho/Norte-Sul. O que ainda me deu mais condições para, por exemplo, gravar pela primeira vez num estúdio profissional, ter orçamento para fazer clips com mais condições… Essas coisas que parece que não importam mas que acabam por profissionalizar um bocado o trabalho. Faríamos omeletes sem ovos na boa, como sempre fizemos, mas o facto de ter esse apoio facilita o trabalho.
Tem sido um processo progressivo, natural, de abertura, crescimento e profissionalização. Nos últimos dois anos parece que as coisas foram muito rápidas mas, se não fossem aqueles quase oito anos no underground, não estaria preparada para, agora, fazer as coisas bem feitas.
O teu trabalho oscila entre a intervenção cívica e um tom mais pessoal. Em que registo te sentes mais à vontade?
Sinto-me à vontade a falar de tudo um pouco – sou eu a escolher o tema da minha escrita em cada momento. É óbvio que há coisas mais difíceis de abordar ou, às vezes, sinto que há letras mais difíceis do que outras mas não é como se me sentisse menos à vontade num tema. Diria que o que sempre foi mais difícil, em termos de registo, foi o egotrip, o punchline, o rap mais competitivo. Talvez seja uma coisa que não faço tanto. Já fiz bastante na minha primeira mixtape e nas participações que se seguiram, precisamente para o treinar, porque era uma coisa que não fazia com muita facilidade. Mas a crítica social, o rap biográfico, contar histórias e coisas mais emocionais, acho que é o género em que estou à vontade. Se me perguntarem pelo punchline, egotrip ou sons de festa mais para a pista de dança, não diria que não me sinto à vontade mas não são tanto a minha praia.
O hip-hop, principalmente em Portugal, está mais associado ao género masculino. A aceitação dos teus discos significa que as coisas estão a mudar?
Acho que isso não acontece só em Portugal. O hip-hop nos outros países também é muito masculino. Mas isso não acontece só com o hip-hop: nos outros estilos de música, não vês muitas bandas de mulheres ou com mulheres em lugares de destaque. Só no fado é que elas estão em maioria e, mesmo assim, quem está por trás são os homens: os músicos, os managers e os escritores de canções continuam a ser mais homens do que mulheres.
Esse fenómeno não é relativo ao rap, é geral. Para mim sempre foi algo que me favoreceu: o facto de haver poucas mulheres acabou por me dar mais visibilidade e suscitar mais curiosidade e interesse. Claro que, se a minha música não fosse boa, cinco minutos depois não interessava ser mulher ou ser homem. Se calhar, as pessoas pensam “Ah, deixa ver, uma miúda a cantar, ’bora ouvir”. Depois, ou gostam ou não gostam. Portanto, por um lado favoreceu-me, mas também não vou retirar mérito ao meu trabalho: o facto de ele ter qualidade fez com que essa curiosidade não caísse em saco roto e se mantivesse o interesse.
Pensas que motivas o género feminino a investir mais no hip-hop ou mesmo noutros estilos?
Só a história é que dirá e não sou a pessoa indicada para fazer essa avaliação. Se puder contribuir, é bom que hajam mulheres que se sintam inspiradas a fazer rap e música em geral, mas também é bom inspirar os homens. Nunca fiz disto uma missão direccionada porque só o facto de fazer o que faço e me sentir bem a fazê-lo acaba por criar esse estímulo. Gosto de acreditar nisso mas só o tempo é que vai dizer.
Nos teus concertos vê-se público de todos os estilos, não só necessariamente do hip-hop. Estás a levar o hip-hop a um público mais abrangente? Quem é o teu público?
O meu público é como tu dizes: há muita gente diferente, mesmo. Gente de todas as idades, de muitas tribos urbanas, muitas mulheres, também. É um público muito ecléctico, de facto, mas isso para mim é muito positivo. Sentir que consigo comunicar com tantas pessoas diferentes, e fazer com que as pessoas se identifiquem com as palavras e tenham vontade de vir ao concerto e depois se divertem, mesmo que não seja a praia delas ou seja o primeiro concerto de rap a que assistem, para mim é muito positivo e tem acontecido cada vez mais. É das maiores conquistas que tenho para pôr na minha lista de vitórias pessoais para depois contar aos meus netos… (risos)
Já colaboraste com imensas pessoas, desde Sérgio Godinho a Sam The Kid. Há alguém com quem ainda gostasses de o fazer?
Claro que há muitas pessoas que admiro e com quem gostava de fazer música mas normalmente, quando convido alguém para fazer uma música num disco meu, é porque acho que aquela música precisa daquela pessoa para se cumprir, para a minha visão ser materializada: preciso daquela voz, daquele rapper ou daquele contributo.
Havendo quinhentas pessoas com quem eu gostava muito de trabalhar, só fará sentido se a música precisar delas. Não gosto muito de dizer nomes porque poderá nunca surgir a música certa ou, até, ser essa pessoa que me vai convidar a mim.
Até agora já colaborei com pessoas que admiro. Por exemplo, neste álbum tenho três vozes que admiro muito. Além da M7, que me acompanha nos concertos, colaborei com a Gisela João – para quem já tinha escrito uma letra, portanto foi uma segunda colaboração – e a Aline Frazão, que admiro imenso como escritora de canções, pela voz que ela tem e pela sua postura. Tenho coleccionado participações mesmo muito fixes. No futuro, num plano onírico, se calhar a Erykah Badu, que é um astro que admiro, mas há muitos outros.
Como alguém que tem na sua principal tarefa a feitura de rimas, não te sentes um bocadinho presa aos beats e às melodias que fazem para ti?
Não porque eu é que as escolho e só escrevo para um beat que eu goste e que eu escolha. Pelo contrário, não me sinto presa, eu preciso deles. Para mim é uma matéria-prima porque eu não escrevo no ar, escrevo para eles. Normalmente, vou à procura do instrumental que serve o ambiente de que estou à procura, para cada ideia. Escrevo a letra só para esse instrumental e é uma coisa que me dá energia, como um combustível, nunca é uma prisão. Se for, excluo o beat. Se eu vir que não consigo fazer nada, que é estéril, à partida não vou escolher aquele beat. Se eu escolhesse e fosse um erro de casting, se sentisse que não dava para fazer nada daquilo, abandonava o beat na hora.
Há alguma rima que tenhas encravada, à espera dum beat adequado?
Não, mas às vezes há temas que quero muito escrever e ando muito tempo à procura do beat certo. Neste disco, até foi relativamente fácil, mas no primeiro foi muito difícil encontrar os instrumentais certos para a quantidade de temas que eu queria explorar. Foi um processo longo e às vezes pegava num loop e pensava: “Isto é capaz de ser a semente para fazer um beat para esta ideia que eu tenho” e estava com o D-One, que é o produtor que trabalha comigo e meu DJ, a tentar fazer daquilo um instrumental, precisamente porque eu não queria desaproveitar nada que me inspirasse. Pode ser difícil, mas nunca aconteceu ter uma letra para a qual nunca tivesse encontrado o beat certo.
Nos últimos anos, na música portuguesa, tem-se registado uma imensa criatividade. Como é isso possível num tempo de crise económica profunda? É coincidência ou consequência?
É uma consequência. O facto de a indústria musical ter perdido o poder e as redes sociais terem permitido que os músicos se aproximassem do público sem intermediários deu uma oportunidade a muitas pessoas que fazem música alternativa e nunca teriam oportunidade de chegar a uma grande editora ou furar no circuito tradicional de promoção e de comercialização de música.
Hoje em dia, cada um faz o seu Facebook, o seu Soundcloud (antes o seu MySpace) e põe música que faz em casa directamente para as pessoas. Também a banalização das tecnologias – dos computadores, placas de som,… – permite que as pessoas façam música em casa sem precisar de pagar um estúdio profissional, que é muito caro e só as editoras grandes podem pagar. As redes sociais, o facto de as tecnologias serem mais acessíveis, de haver menos intermediários entre os músicos e as pessoas facilitaram muita coisa.
Antes, tínhamos a ideia de que se ia trabalhar, ser advogado, engenheiro, médico… Hoje, a nossa geração pensa assim: “Provavelmente não vou ter emprego. Se é para ser pobre, mais vale ser feliz.” Então vejo muita gente, não só na música, a dedicar-se ao que realmente gosta, seja uma empresa de cupcakes ou agricultura.
Há dez anos atrás ou até há menos as pessoas talvez dissessem “és maluco, vai mas é trabalhar para uma empresa…” Hoje, como é tudo tão instável, “perdido por cem, perdido por mil”, mais vale sermos felizes. Vejo muitos colegas meus a apostar na música porque, já que está tudo tão difícil, mais vale estar a contar trocos mas fazendo aquilo de que se gosta. A crise também tem esse lado libertador: não temos nada a perder, vamos fazer aquilo de que gostamos. E vejo muita gente a fazer isso. Ou muita gente que estava a trabalhar e agora não tem emprego ou que acaba o curso e não tem perspectivas de emprego e então tem muito mais tempo para se dedicar à música. É esse conjunto de todos os factores que está a transformar muito a forma de fazer, vender e promover música.
Numa das tuas canções, tomas uma frase de Almada Negreiros que diz que “o preço de uma pessoa vê-se na maneira como gosta de usar as palavras” e tu não usas só as tuas palavras como também as palavras dos outros. De que maneira é que essas palavras enriquecem o teu trabalho ou são o ponto de partida para algumas canções?
Precisamente. Algumas delas são o mote, são inspirações, coisas que eu li ou ouvi, que depois funcionam como semente de uma ideia e acabam por estimular essa música. Às vezes são coincidências, como ter uma música e depois pensar “este gajo está a dizer uma coisa parecida com a que eu digo, vou trazer para a minha música”. É quase como se fosse uma parede de recortes. Um quadro de cortiça onde eu vou pondo fotografias, recortes de jornal, frases de livros, músicas, filmes, livros que me inspiraram ou que, pelo menos, compõem o meu imaginário e o meu universo de referências culturais, etc e eu acho que isso é importante – até porque o hip-hop vive muito dessa reciclagem de referências anteriores.
O sampling é isso: pegar em bocadinhos de uma música soul dos anos 1960 e transformar num beat que é mesmo 2015 e fazer a minha rima por cima. É como o fermento de padeiro: a levedura que os padeiros usam é um bocadinho da massa fermentada do dia anterior. Então, o pão de amanhã vai ser feito com um bocadinho da massa do dia anterior e assim sucessivamente. Isso é muito importante, porque é quase como uma homenagem eterna ao que nos alimenta e aquilo que nos alimenta a fazer cultura é a própria cultura – portanto, faz todo o sentido.
Nós não nascemos do nada, trazemos uma herança e é fixe que essa herança se renove permanentemente, até para que as pessoas que nos estão a ouvir pela primeira vez e os putos percebam o que vem para trás e tantas outras coisas que nos rodeiam. As pessoas gostam de rap, se calhar ouvem uma dica do MC naquela música e perguntam “Que é isto?” – uma citação de Fernando Pessoa ou de Mário Viegas – e vão ouvir, vão investigar…
Tens também Jorge de Sena…
Jorge de Sena, Sophia de Mello Breyner, José Gomes Ferreira… E vai acontecendo isso: esses recortes de músicas, de palavras, fazem com que o meu trabalho também remeta para aquilo que são as minhas influências.
Se tivesses de escolher: windsurf ou brinc-dance?
O quê, para eu fazer? Não sei, nem um nem outro. Na verdade, durante a minha infância pareciam coisas mesmo fascinantes mas depois, na vida real, nunca tive interesse em fazer nem uma coisa nem outra. Diria o graffiti e uma cassete de ginástica da Jane Fonda, que me está a fazer falta. (risos)
Alguma vez foste a Vayorken?
Não, nunca. Mas hei-de ir. Espero ir, em breve, pode ser que me ofereçam uma viagem a Vayorken. (risos) Ando eu aí a falar de Vayorken, qualquer dia ligam-me de uma agência de viagens a oferecer-me…