No que pensamos quando pensamos em Alex Cameron? Sintetizadores vintage, um saxofone e um rol de personagens que nos contam a sua história, nem sempre politicamente correta, num tom que faz lembrar Bruce Springsteen, se este fosse australiano e falasse mais de sexo. Miami Memory, o seu terceiro disco, não é exceção. Ou talvez seja!
Lançado em setembro de 2019, Miami Memory é produzido, à semelhança do antecessor Forced Witness, de 2017, por Jonathan Rado dos Foxygen. Para além do produtor, este novo disco mantém também a formação de banda completa (apesar de Alex Cameron o ter escrito sozinho num pequeno piano) e, claro, o saxofonista e business partner Roy Molloy. As canções, essas, são pequenas histórias sobre coisas pequenas, como não podiam deixar de ser. Histórias com as quais é fácil envolvermo-nos, dado o detalhe com que nos são descritas. E é aqui que surge a diferença em relação aos seus trabalhos anteriores: Alex Cameron disse em várias entrevistas que deu para promover o álbum que o escreveu como uma prenda para a sua namorada, a atriz Jemima Kirke. Assim, é um álbum mais pessoal, em que se debruça sobre a sua relativamente recente vida familiar e parece pôr de lado as personagens duvidosas. O objetivo? Escrever um álbum terno sobre o amor. Pergunto-me se será por isso que surge na capa com o cabelo curto e negro, deixando no ar a dúvida sobre o que terá acontecido à longa cabeleira loira cuidadosamente penteada para trás que víamos no passado. Como se esta fosse o adereço característico da(s) personagem(ns) que Alex Cameron encarna em cima de palco, e ele a pudesse tirar, ao fim do dia, quando regressa a casa para junto da família.
É, portanto, um disco com menos teatralidades, em que vivências pessoais são amplificadas e nos é permitido espreitar para a vida de um jovem rock star que começa a crescer e a assumir responsabilidades. Isto é claro em “Stepdad”, canção que abre o álbum, em que Alex escreve cheio de ternura sobre o seu recém-adquirido papel de padrasto (Jemima tem dois filhos de um casamento anterior), enquanto sintetizadores que nos fazem lembrar de Jumping the Shark (álbum de estreia de 2016) servem de pano de fundo. Também em “Other Ladies” é claro este lado mais pessoal quando Alex promete devoção e lealdade à namorada (“I don’t even need those other ladies”). O pináculo das canções de amor é talvez “Miami Memory”, faixa que dá nome ao disco, estranha e doce em medidas iguais, em que temos a sensação de estar a olhar pela fechadura do quarto de hotel que os dois têm com vista para o apocalipse: o nível da água está a subir e o mundo vai afundar-se mas o nosso amor é forte demais para nos importarmos.
Pelo meio destas canções que cumprem bem o papel de prenda para a namorada, surgem interlúdios que nos levam a crer que a cisão total com as personagens é difícil. Assim, encontramos algumas ao longo do álbum, também elas a tentar seguir com a sua vida o melhor que conseguem e até a falar de assuntos que, não sendo declarações de amor, são também importantes. “Far From Born Again” é um hino feminista que quer devolver às mulheres o controlo sobre o que querem fazer com os seus corpos e como ganham a vida (fala especificamente de uma trabalhadora do sexo), eliminando assim moralismos e fanatismos religiosos oriundos sobretudo, mas não só, de homens. O videoclip incluí três mulheres que podiam bem ser aquela de quem se fala na canção e dá-lhes espaço para falarem da sua vida, o que dá visibilidade a uma classe que nem sempre é tida em conta. “Bad For The Boys” é outra canção fruto do seu tempo. Num tom alegre, com um piano a fazer lembrar uma canção infantil, Alex discorre com um sarcasmo ácido sobre os “pobres” rapazes afetados pelos movimentos #MeToo e afins. É uma boa canção para mostrar àquelas pessoas que dizem que não são feministas porque acham que essa corrente de pensamento leva a um regime distópico totalitário caracterizado pela supremacia da mulher. Há ainda “End is Nigh”, exemplo perfeito de como o detalhe cinematográfico com que conta histórias nos faz envolver completamente com as suas personagens já que damos por nós a torcer pelo alcoólico deprimido.
Importa ainda falar de “Divorce” e de “Too Far”. “Divorce” porque foi o single de apresentação de Miami Memory (não deixa de ser irónico que Alex Cameron apresente ao mundo o álbum em que celebra a longevidade da sua relação, com um tema que fala de divórcio), e é, provavelmente, a canção com mais força do disco, já que nos deixa a cantar entusiasmados o refrão que tem tanto de catchy como de violento. “Too Far” porque fecha o álbum com belo momento de spoken word durante o qual é quase possível ver Alex a sussurrar aquelas ternas palavras a Jemima no pequeno apartamento em Queens onde escreveu estas canções. Aqui sim, não há ficções.
Podemos então concluir que o objetivo proposto inicialmente foi cumprido. O resultado final é um álbum que tem nas letras o seu ponto forte e que consegue, ao longo das suas dez canções, fazer-nos rir enquanto tece considerações importantes sobre a vida (a dois) no século XXI, numa mistura que pode não fazer completo sentido numa primeira audição, mas que acaba por nos deixar com a feliz sensação de que o balanço é positivo e que, eventualmente, tudo acabará bem.