Como é que se chama ao período entre o 7.º e o 9.º ano de escolaridade? Ciclo? Ensino preparatório? Secundário é o depois disso até ao 12.º, certo? (E assim começa um texto sobre os Linda Martini, com uma branca tão desnecessária como gritante deste que vos escreve.) Bom. O ensino preparatório, ou seja lá o nome que se dá ao período entre o 7.º e o 9.º foi uma grande escola – não só de sebentas, tabuadas e recados na caderneta, mas de vida. Os primeiros cigarros atrás do pavilhão H, aquele mais recente que construíram lá na escola, a chegada do telemóvel aos filhos de pais mais abastados e aos grupos mais cool, das miúdas giras, da tipa que já namorava com um gajo que andava no 12.º e tinha carro e idade para andar no terceiro ano de faculdade mas isso agora nada interessa. Tempo e espaço? Queluz, Massamá, mais concretamente, escola Miguel Torga, onde o meu pai dava e dá ainda aulas, o que sempre foi um bocado embaraçoso. Compreendem, certo? Ter o próprio pai na escola, passar por ele nos intervalos, e nós junto dos colegas. Felizmente não estava só e tinha o meu (ainda hoje) grande amigo Daniel na mesma situação – mais terrorista que eu, foi “éne” vezes mais ao Conselho Directivo, e ele ainda estava em pior situação porque o diretor da escola era mais amigo do pai dele que do meu, até foram juntos várias vezes à bola, vejam lá. (Calma, já chegamos aos Linda Martini). Recapitulo: Massamá, freguesia de Queluz. Anos 1990, segunda metade da década. Os Excesso estavam no auge e motivaram a minha primeira grande carta de amor – “Olá Magda, a visita de estudo foi muito gira”, começou mais ou menos assim, salvo erro, e descambava numa lamechice sem palavras – a não ser, lá está, as dos Excesso. Tinha sido depois de uma visita de estudo a Coimbra, acho eu, que tinha engraçado com a Magda. Por falar em visitas de estudo, também tinham nas vossas turmas aqueles tipos que até sabiam umas coisas na viola e depois sacavam ali do “Borrow”, dos Silence 4, e tinham as miúdas giras por eles enfeitiçadas em três acordes? Sacanas, pá. Eles. E elas também um pouco, mas adiante. (Aguentem só mais um pouco para vos contar o quão bons são os Linda Martini.) Na altura, quando os 18 pareciam uma miragem e o grito de liberdade que nunca chegava, ir à Internet era uma raridade, já o Rui Unas apresentava programas de jovens, sim, mas o Benfica andava uma miséria. Mas, lá está, ali entre o 7.º e o 9.º ano , começámos – eu, o Daniel e mais um par de boa malta – a ganhar o gosto pelos concertos punk de final de período que a Associação de Estudantes organizava no espaço adjacente ao bar da escola. Eram bandas de pessoal local, rapaziada uns anitos mais velha que nós mas com igual sede de melomania. Os Linda Martini já lá andavam – espalhados por diferentes bandas, faziam o circuito de liceus entre Queluz e Massamá, e tocavam, soube eu depois, em diferentes casas ocupadas ali nas zonas por onde desde cedo me mexi. (Pessoal de Queluz, alguém se lembra da casa ocupada ao pé da estação de comboios que tinha um cão do tamanho de um cavalo à porta? Um doce de cão. Em frente ainda hoje lá está o restaurante “O Combatente”, do senhor Guilherme, o tasco onde uma vez parti um copo na boca por trincar o vidro.)
Os Linda Martini. Agora são quatro, já foram cinco. Já fizeram dez anos desde que se juntaram formalmente nesta aventura. Têm um disco novo, Turbo Lento, terceiro álbum de originais a juntar na discografia a um par de EPs e edições aqui e ali mais especiais e limitadas. E acaba-se aqui o formalismo neste texto, porque nada nos Linda Martini me traz à terra e à palavra formal, regra e esquadro de um desgarrar emocional e até afetivo que não consigo ter aqui. Tenho orgulho nos Linda Martini: vi-os crescer sem saber quem eles eram, sem eles saberem quem eu era. Para mim, antes de serem os Linda Martini ou a malta de bandas que viriam dar aos Linda Martini, era o pessoal mais velho e fixe que me oferecia guitarras, adrenalina e descargas físicas que eu só imaginava nos telediscos da MTV e pouco mais – e eles faziam isso no bar da minha escola. Vi-os crescer e passar do “boca-a-boca” a algo mais. Hoje têm discos esgotados (já ninguém consegue comprar um Olhos de Mongol, primeiro álbum, a não ser em segunda mão) e chegam a 2013, 15 anos depois do meu primeiro contacto com este circuito de bandas de Queluz, a editar pela Universal o terceiro álbum de uma carreira que é isso mesmo – uma carreira. Já não é uma aventura de rapazes (e uma rapariga) com sede de amplificadores e pedais de distorção. Os Linda Martini editam agora e têm para eles a trabalhar a máquina que trabalha um Carlos do Carmo, uns Xutos & Pontapés ou um Pedro Abrunhosa. E, no meio de tudo isto, conseguem manter um muito saudável controlo de quase tudo em seu torno.
Turbo Lento, pois então. Se jogarmos um jogo de, sem aspirações a críticas musicais mais complexas e focadas na qualidade ou pertinência de arranjos e estruturas, o desafio de trazer para palavras e imagens a música que nos entra leitor de cd adentro (ou Spotify adentro, primeira plataforma com o disco em ‘streaming’) vai trazer algumas surpresas. Cáustico, corrosivo, muito denso e com muita letra que mexe cá dentro, Turbo Lento é menos imediato mas, não duvido, mais recompensador na sua profundidade. Vai buscar Chico Buarque (“Foi bonita a festa, pá. Fiquei contente…”) onde antes já José Mário Branco e o ‘hip-hopper’ do metro de Lisboa haviam estado. Há faixas punk, muito punk (“Juárez”, “Tamborina Fera”) , há as voltas e vertigens e imprevisibilidade de “Sapatos Bravos”, há “Ratos”, por demais conhecida e elogiada por esta hora, “Tremor Essencial”, e muita e melhor letra – onde antes se cantava que “se o nosso amor é um combate/então que ganhe a melhor parte” hoje escava-se mais fundo: “No céu da tua boca é sempre dia/Vou sem escolta ver o sol”, de “Aparato”, canção e grito de revolta e conquista (“mexer, mexer, desarrumar!”) está na pirâmide das minhas preferências no que a versos diz respeito.
O Daniel está na Suécia a trabalhar no Spotify – as voltas que a vida dá… – e os Linda Martini, bem, esses, continuam a dar-me uma energia e um querer ser mais alguém e ir mais além como só as coisas que nos tocam sem explicação conseguem – e nos fazem superar e continuar, e querer mais, lutar por mais. A Magda, essa, nunca me deu troco. Mas acho que está casada e tem filhos.