
Em noite de alguma histeria coletiva por via do web summit que aterrou com forte impacto em Lisboa, fez-nos bem ouvir o classicismo moderno de Wim Mertens!
O concerto de ontem foi uma autêntica batalha (o próprio Mertens gosta de classificar assim o seu espetáculo), e o palco dessa contenda musical foi o Grande Auditório do Centro Cultural de Belém, que mais uma vez abriu as portas ao Misty Fest.
Os que conhecem o talento do músico belga, tanto pela excelência da sua extensa e diversificada discografia, como pelas suas atuações ao vivo, sabiam bem ao que iam. Wim Mertens anda a percorrer a Europa apresentando o seu mais recente disco, Dust of Truths, o último de um tríptico intitulado Cran Aux Oeufs que evoca tempos antigos e modernos, desde o ano XXXI A.C. (a célebre Batalha de Ácio, em que César Augusto derrotou Marco António e Cleópatra) até à Bruxelas do tempo presente, fazendo paragem obrigatória na Biblioteca de Alexandria. Se todas estas datas e locais parecem deixar-nos apreensivos quanto ao que poderíamos vir a presenciar em palco, a verdade é que a autonomia da música elaborada por Wim Mertens fala por si. Assim, independentemente dos contextos históricos e culturais que estão na base de todo o seu discurso musical e que são uma espécie de metáfora dos tempos que correm, a boa música ergueu-se, triunfante, seduzindo-nos através dos seus efeitos emotivos e estéticos, minimalistas mas tão expressivos e sofisticados que, aos poucos, foram tocando todos aqueles que ontem tiveram o privilégio de assistir a mais uma noite do festival Misty Fest, que já vai na sua sétima edição, e que vai também ganhando peso e presença como um dos melhores festivais de outono do nosso país. Wim Mertens ao comando, à frente de um exército de sons e melodias intrincadas. Foi assim o combate em que todos saímos vitoriosos.
A noite começou com uma agradável surpresa. No palco, e apenas por uns breves 15 minutos, atuaram André Barros (piano) e Cátia Alexandra Santos (violino). Nas únicas três composições que partilharam com o público, ouviram-se ecos de Madredeus, embora sem voz, sendo no entanto fácil imaginá-la. Mas também ecos de Michael Nyman, sobretudo o dos filmes de Peter Greenaway, como Drowning By Numbers, por exemplo, e ainda ecos de Wim Mertens, a estrela que todos desejavam escutar, claro. Assim, logo de seguida, o compositor belga entrou para tocar os temas do recente Dust of Truths. Foram belíssimas as composições que se fizeram ouvir, requintadamente, naquele que é um dos melhores espaços de Lisboa para se escutar música. Aqui, no território musical de Wim Mertens, nada é plastificado, nada vive de pressas, aqui a música tem uma voz tão autêntica e própria, tão verdadeira e particular, que é fácil o encantamento e o deslumbre. Que prazer!!! Um simples trio (piano e voz, violino e cello) bastaram para a apresentação das onze peças escolhidas para a primeira parte dos concertos em Portugal. Na segunda, temas mais antigos e mais conhecidos de algumas das suas obras dos anos oitenta e noventa fizeram parte do alinhamento do espetáculo. Assim, durante mais de duas horas de concerto, e sobretudo na segunda metade do mesmo, os momentos de êxtase foram mais que muitos. O público não queria que a noite tivesse fim, e Wim Mertens foi-se mostrando satisfeito pelo carinho demonstrado por quem o ouvia. Por isso, terá entendido que quatro encores bem recheados fosse a melhor resposta para tantos e sentidos aplausos. Nos minutos finais, o delírio absoluto! Ouvir de seguida canções como “Often a Bird”, “Struggle For Pleasure” ou “Close Cover” é qualquer coisa de verdadeiramente surreal!
A música de Wim Mertens cola-se à pele, entranha-se depois de forma imediata e vai-se aquietando por dentro, acomoda-se na alma, faz ninho em nós. Isso está apenas ao alcance dos génios, e ontem esteve também ao alcance dos nossos ouvidos.