Não sei se ainda é cedo para o afirmar, mas acho que estamos perante a obra-prima dos peixe : avião. Ao quarto álbum de estúdio, os cinco rapazes de Braga estabelecem uma nova linguagem que os transforma num caso mui sério, no panorama nacional sem dúvida, mas também com todo o potencial para fazer boa figura lá fora.
Se nos primeiros dois álbuns estavam mais perto de um pop rock de inspiração Radiohead, com o disco homónimo de 2013 começaram a fugir para um pós-rock muito próprio, a demarcar um território novo, mais obscuro, elaborado e com novo requinte na construção. Agora, aprofundaram esse método e atiram-nos à cara este Peso Morto, que merece toda a nossa dedicada atenção.
Nas próximas linhas mergulhamos neste novo disco, pela mão do guitarrista André Covas, com quem conversámos em Lisboa, num dia cinzento que parecia saber que a nossa entrevista estava marcada.
Peso Morto afasta-se dos trabalhos anteriores em diversos aspectos. Um deles é precisamente a cor – onde antes havia mais luminosidade, agora há negrume: «Acho que o disco acima de tudo é denso. Tem muito nevoeiro ou fumo, mais fumo que nevoeiro, é denso, é fechado na sua imagem, aberto nalgumas coisas da composição mas é um disco denso, pesado. E em relação ao nome, quisemos pegar nalguma componente lírica presente nas letras. Peso Morto, não pela sua simbologia de algo dispensável, de algo que mais valia não estar lá, um estorvo – foi mais pela carga imagética que Peso Morto simboliza».
O processo de criação do novo álbum também foi moldado pela experiência de 2014, quando foram convidados pelo Festival de Curtas de Vila do Conde, para criar uma banda sonora para um filme de 1929, Ménilmontant, realizado em 1929 por Dimitri Kirsanoff, que «foi muito importante em termos de estratégias e de fórmulas de composição que pudemos explorar (…) porque nos obrigou mesmo a afastar do formato-canção, porque a estrutura da composição estava definida pelo filme e era uma estrutura linear de 40 minutos, e isso obrigou-nos a arranjar soluções muitas vezes mais sónicas do que melódicas para construir música». Houve também uma mudança nas prioridades. Apesar de este disco ser muito mais exploratório, ainda há preocupações com a melodia, mas ela não está no centro: «Sim ainda existe melodia, mas algumas das vezes, diria que 50% do disco, a base das músicas, aquilo que origina depois a construção da canção muitas vezes são coisas mais texturais, rítmicas, ruídos – em vez de ser uma melodia que depois é adornada com ruídos. O processo inverteu-se um bocado, temos coisas que partiram de uma gravação de telemóvel na sala de ensaio a gravar, através de uma coluna estragada, uma bateria processada, e daí depois nasce uma música».
Embora o guitarrista não goste de o declarar, podemos falar numa segunda fase na vida dos peixe : avião. Já passaram a adolescência e estão agora na idade adulta. E com isso vem, por exemplo, uma nova forma de criar – «fazemos questão de compor na sala de ensaio, sem pré-requisitos e sem pré-ideias, fazer a coisa livremente, os cinco, na sala de ensaio. Isso mudou, não só a forma de trabalhar, como o som em si, porque começámos a trabalhar muito mais com o som, em vez de trabalharmos individualmente harmonias e melodias em casa e depois montar aquilo. Agora nós pegamos nas guitarras, nos amplificadores, numa sala pequena, com material alto que faz feedback, que está distorcido, que faz ruídos, e pegamos nessa plasticidade dos instrumentos e ainda a tentamos potenciar mais estragando nós também o som. E pegamos nisso como matéria prima para fazer as músicas (…) O formato canção é sempre estragado ou repensado. Isso foi um exercício que nós nos impusemos no sentido de tentar ser mais inventivos na estrutura das músicas – e sentimos essa necessidade do resultado do disco anterior, quisemos ainda explorar esse lado mais um bocado, não no sentido de adulterar o formato canção, mas tentar tornar mais interessante a construção da música, não limitá-la ao formato canção – ele existe, mas pode-se brincar com ele».
Este brincar à desconstrução resulta, por exemplo, em canções mais compridas – algumas à volta dos 7 minutos, mas também se dá o caso de um tema mais curto que nos suga de tal forma que quando chegamos ao fim da canção, duvidamos seriamente que apenas tenham passado 4 minutos. Há, ao longo de todo o álbum, uma intensidade, uma tensão que queima em lume brando no fundo de uma sala escura e fria. Quando há pouco se disse que os primeiros discos, a banda estava mais perto de Thom Yorke, Peso Morto remete imediatamente para um cenário industrial de inspiração germânica ao mesmo tempo que faz a ponte entre a Bristol do último disco de Portishead e Montreal dos Godspeed You! Black Emperor, principalmente pela batida fortíssima e intermináveis espirais instrumentais. «A bateria foi muito trabalhada, no sentido de ter sido muito “estragada”, a secção rítmica é algo muito forte, muito presente neste disco. A conjugação baixo-bateria, ou bateria-sintetizador a fazer de baixo, etc, há sintetizadores muito pulsantes que são linhas de baixo algo estranhas, depois com baterias muito marcadas por cima. E o instrumento bateria em si também foi muito trabalhado – ligámos microfones à bateria, passámos por uma cadeia de pedais de guitarra e a sair por um amplificador, por isso às vezes a bateria soa a uma coisa distorcida, maquinal, que poderia ser feita por uma caixa de ritmos processada. Por vezes a guitarra é tratada como instrumento rítmico e não como instrumento melódico, por isso há guitarras que podem parecer caixas de ritmos ou guitarras que parecem camas de sintetizadores. A própria voz é trabalhada muito mais como instrumento, apesar de a componente lírica ser importante, mas não se sente uma voz destacada, está mais diluída a voz como instrumento na cama de instrumentos que lá estão, e que pode ser confundida com uma guitarra ou sintetizador, tem o mesmo papel. E acho que todo esse embrulhar, toda essa incerteza sobre o que é que estamos a ouvir, faz com que o disco fique denso, negro, arrastado».
Esta desconstrução dos moldes tradicionais lembra certas artes plásticas, «mas no nosso caso, partimos mais vezes do abstracto para o concreto. Pelo menos é isso que eu sinto em relação à música. Por exemplo, as letras vêm no fim das composições e muitas vezes a melodia vem depois da densidade instrumental ou de a secção rítmica, que é em si mais abstracta, estar definida. Mas sim, existe uma plasticidade muito grande, deliberada, dada aos instrumentos, nós de facto trabalhamos a plasticidade, a fisicalidade dos instrumentos».
Apesar das inúmeras camadas que compõem cada tema, foi tudo gravado em directo, sem artifícios de pós-produção, para permitir que seja tudo levado para o palco e tocado pelos 5 músicos. Por falar em palco, a apresentação oficial em Lisboa é esta quinta-feira, dia 18, no Lux e, crê-se, tudo vai sair de forma muito natural. «Nós compusemos em círculo, na sala de ensaio, tocamos ao vivo em círculo, e só não gravámos em círculo porque tínhamos salas separadas para as guitarras, mas gravámos todos em simultâneo, a olhar uns para os outros. Existe um contacto visual muito próximo entre a banda, e é porreiro dar concertos assim, porque conseguimos olhar uns para os outros, fazer sinais, e sentir que estamos quase num ensaio – um ensaio com muito fumo, pouca luz e público. E como nós tocamos ao vivo como ensaiamos, é muito natural para nós tocar aquilo ao vivo. Por um lado, o concerto tem mais vida do que o disco, porque as coisas estão mais altas, podemos extravasar mais nalgumas partes, porque ao vivo existe essa componente mais física que não existe em estúdio a gravar, e por outro lado as músicas têm abertura suficiente para nós conseguirmos improvisar constantemente, ou quase constantemente, é um bocado como dita a vontade e o concerto acaba por ser sempre diferente, sempre novo».
Em resumo, estamos perante um dos melhores discos da música nacional dos nossos dias. Peso Morto é a prova de maturidade dos peixe : avião que, apesar de já existirem quase há 10 anos, ainda têm um animador futuro pela frente e não faltarão decerto ocasiões para nos voltarem a deixar embasbacados!