É preciso ter mãozinhas para escrever como deve ser sobre Panda Bear e a sua obra – e, já agora, a obra do seu grupo, os Animal Collective. Aqui, seja a solo seja em grupo, não falamos de música comum, partindo de estruturas formais e repetidas; cada tema de Panda Bear e dos Animal Collective é uma aventura sonora, um labirinto de sons, emoções, sensações.
Panda Bear é o nome artístico que Noah Lennox, norte-americano de 36 anos nascido em Baltimore, adotou. A viver em Lisboa há já alguns anos, é um homem que do respirar da cidade faz música: antes já houve uma canção chamada «Benfica» e 2015 e o seu novo disco vêem nascer «Príncipe Real», referência à zona da capital onde Noah Lennox mora.
Em 1998, com 20 anos de idade, chegou o primeiro disco de Panda Bear, atual pedaço de colecionismo e registo ainda não vinculativo do que viria a ser esta história. O prólogo foi longo, com a ação principal a solo a chegar somente em 2004, com o lançamento do segundo álbum, Young Prayer, isto já com os Animal Collective em velocidade de cruzeiro – é desse ano Sung Tongs, quinto trabalho de originais e o que começa a revelar a banda a um público maior.
O resto é história: Person Pitch, em 2007, terceiro a solo de Panda Bear, foi aclamado até mais não e levou esta música tão experimental quanto sedutora a amplo sucesso mediático e inesperados momentos de mediatismo, sempre num campeonato alternativo e distante de superiores fenómenos de massas. A seguir, em 2011, chegou Tomboy, ainda numa base eletrónica e experimental mas com mais guitarras ao barulho. E agora, o nosso Panda preferido traz-nos Panda Bear Meets the Grim Reaper, que embrulha tudo isto, junta-lhe pormenores novos, baralha e volta a dar e dá-nos novo par de estalos de encantamento.
(Faltou acrescentar que ao longo destes anos os Animal Collective gravaram mais uma mão cheia de álbuns e EPs, inclusive um filme, e consolidaram a sua presença e a sua importância – Feels e Merriweather Post Pavillion, em concreto, são discos que poucos terão ignorado. Nem todos os terão apreciado, naturalmente, mas a importância de uma banda não se mede apenas no que a música desta nos transmite e no apreço que por ela nutrimos. Mas já lá vamos.)
Panda Bear Meets the Grim Reaper, pois então. Treze faixas, artwork colorido, um forte teledisco de apresentação (e que belo e refrescante single é «Mr. Noah»). Há canções, várias, a disparar em várias frentes: destaca-se por exemplo um arranque planante («Sequential Circuits») e com várias camadas de voz em sobreposição, algo recorrente na obra do músico e também neste disco.
Ainda nas toadas mais calmas, o apontamento maior vai para «Tropic of Cancer», bálsamo guiado pela voz de Noah e por uma suave harpa; «Lonely Wanderer» é orgânico de igual modo mas com o piano no centro da ação; mais mexida, «Butcher Baker Candlestick Maker» é luminoso e antecede «Boys Latin», segundo single e laboratório maior de experimentação sonora aliada ao entranhar de uma melodia e um ritmo na mente de quem escuta e estas composições absorve.
Há em Panda Bear Meets the Grim Reaper sons dispersos, meio caminho entre a natureza e a urbe, mas aqui aliados a sonoridades mais robustas e encorpadas. Este é um disco com apontamentos funk e até hip-hop, algo não escutado até ver na obra de Noah Lennox. Contemplativo, este é um trabalho de pormenores. Prendendo nas primeiras audições, ganha com a permanente descoberta de novos elementos, um loop antes não detetado, uma vocalização sobreposta que não parecia assim tão pertinente, um som vindo de outro mundo e que facilmente atraca num todo só aparentemente disperso e cacofónico.
Lá em cima dei um lamiré sobre de que é feita a relevância de uma banda. Aparte questões de gosto, de sensibilidade e da forma como a música nos toca – e só isso já é um mundo – há bandas, artistas e músicos cuja relevância e papel vive de mais que da devoção dos seus crentes, sejam estes dez ou dez milhões. Seja pelo papel estético, de criação musical, de abertura de portas e novos mundos para outros que se seguiram, muitos são os exemplos que aqui cabem. Aos Animal Collective cabe um lugar na história mais recente da música, lugar esse que vive sem a sensibilidade do ouvinte – foram eles que neste século mais longe chegaram em mediatismo e respeito (não de multidões, mas de melómanos convictos) praticando sonoridades tão aparentemente pouco dadas a mundos maiores. Não foram em momento algum elogiados pela prosaica e convencional escrita, antes pelo verdadeiro bolo alimentar servido: cabe aqui rock, umas vezes mais rápido, outras nem tanto, pop, muita eletrónica, algum tropicalismo, nervo, tribalismo.
Os Animal Collective, e Panda Bear, fazem música estranha que entranha. A banda não é convencional, com músicos a trocar de instrumento de disco para disco (muitas vezes de música para música), aqui cantando um elemento, ali dois, pontualmente todos. Já usaram e abusaram dos samples, no último disco Centipede Hz., estiveram como nunca próximos de uma banda rock mais convencional (e talvez não por acaso o disco nem seja grande portento). A música muito específica e que se temia experimental demais para fugir de um nicho furou para um mercado maior sem nunca deixar de perder a identidade de um nicho, e ainda para mais um de muito bom gosto e referências – este é talvez o trunfo maior dos Animal Collective, cuja memória mais distante deste que vos escreve e remete para um concerto, em 2005, que deveria acontecer num cacilheiro no Tejo e acabou com um barracão no Ginjal – margem sul – a virar epifania. A última impressão ao vivo, a mais recente, deu-se numa recente edição do Primavera Sound de Barcelona: palco gigante, aparato visual e cénico imenso, cabeças de cartaz do maior palco num dos festivais mais respeitados do mundo em matéria de música tida por alternativa. E, lá está, no Ginjal como em Barcelona, a mesma banda de sempre, a fazer hipnose perante os devotos com sons estranhos e formas originais e atípicas de desenhar uma cantiga.
Espero ter tido mãozinhas para isto. E agora toca a carregar no Play outra vez.