Há uns meses, antes do lançamento do segundo EP de Yung Xalana, duas almas penadas deram as mãos para escrever sobre ele. Mas o texto ficou perdido no éter. Recuperamo-lo agora.
As melhores histórias e canções escorrem por entre as brechas dos corações em cacos. “Corazon Partido”, a aludir ao hit de Alejandro Sanz e a abrir RIP Xalana, é uma delas. O segundo EP de Yung Xalana no espaço de um mês começa com a guitarra de Henrique Carvalho Lopes (casaxangai), gravada depois por Guilherme Almeida, a gemer e um riffão sacado ao baixo por Lourenço Abecassis, depois chega a bateria de Miguel Costa (Co$tanza), demolidora, marcial. Por fim, entra em cena Yung Xalana, protagonista desta thrashédia no wave, a gritar para o vazio, a carregar cada sílaba com a força de uma palavra de ordem: “Coração, partido. Coração, partido. Coração, partido. Coração, partido. Coração, partido. Coração, partido. Coração, partido. Coração.”
Durante quase quatro minutos, o seu exorcismo afugenta os nossos demónios. A dor dele é ou já foi a nossa. Afinal, como Xalana canta e a Dra. Ana diz, “é bastante comum este tipo de sentimento dos homens dos 15 aos 37”. A única mentira é que, hoje, continua a sê-lo aos 38. E aos 39. E aos 40. Quarenta e muitos anos depois da canção de Blondie, é raro o coração que não é mais frágil do que o vidro. Valha-nos o riffaço pegajoso como algodão doce que, mal acaba a primeira faixa, introduz “Pós-Modernismo”. Bruta jarda, os instrumentos sintonizados numa frequência, as letras assépticas mas fundacionais, um mundo que perdeu o sentido. “O betão já não é betão”, ouve-se. Nada é tudo. Tudo é nada. Nós somos nada. Mas vale tudo. Chinelos no Lux, fachos na rua, betos no Desterro, um “Braancamp armado em Silva”. Há quem parta corações, mas “Beto no Desterro” parte a casa toda. Língua afiada, olhar atento, guitarra orelhuda. E cheiro a tabaco durante uma semana.
Só que o que a noite oculta, a alma espraia. E ninguém se esqueceu daquele corazon partido. Afinal, todos tivemos um; muitos temos. E antes ter um coração partido do que não ter coração nenhum. Mas quantas mortes aguenta um coração? Resiliente, combatente, sempre ressuscitado, talvez por um outro coração. Foda-se. Mas e o nosso? Se for para partir, pelo menos seja porque “Fomos quase”. Quase que poderia explicar esta canção. Quase que poderia jorrar de tão fundo. Quase que ousaria dizer que soube o que é ser quase. Mas, como diz Xalana, ser quase é melhor do que não ser nada, e há quem nem chegue a saber o que isso é. “Fomos quase” é um poema-malha e uma carta de amor. Um quase grande hit, um quase reatar, um quase saber amar. Mas ‘tá-se bem. Vamos fingir que quase chegou.
O fim vem em diferentes formas. O último beijo. A última palavra. A última canção. Esta conta o que acontece a um coração realmente despedaçado. E atenção que um não está mais despedaçado do que o outro só por ser capaz de admitir que o maior clichê do mundo é real: o amor leva à loucura. E que bom que é ser-se louco por alguém. Mas quando se perde alguém passa-se a ser só louco. E ser-se louco sozinho é muito mais difícil. Quem nunca acabou no Júlio de Matos? Na falência do ser, serve-se um “Psicoprato”. Sempre à mesma hora. Até o fim ser tão real, que já nem precisamos dele. Precisamos só deste disco.
Joana Canela e Luís Filipe Rodrigues, 27 de Março de 2025