Mesmo que o impacto do punk rock e do período pós-punk se encontre bem documentado, seja através de compilações, filmes ou livros, o que é certo é que o foco das atenções tem sido, sobretudo, a música produzida em países anglo-saxónicos – com a Inglaterra e os Estados Unidos, naturalmente, à cabeça. É natural, tendo em conta que são estes dois os maiores exportadores mundiais de música pop/rock, em termos de quantidade e qualidade de projectos. Mas é também injusto para com todos aqueles que, mal o punk rebentou, criaram as suas próprias mini-sociedades em nações que, regra geral, não tinham acesso a este tipo de sonoridades.
Assim de repente, poderíamos falar da neue deutsche welle, cruzamento alemão entre o pós-punk e a electrónica que acabou por encontrar fiéis em vários pontos do globo, muito por culpa dos D.A.F., de Nina Hagen ou até mesmo dos Trio (os mesmos de “Da Da Da”, a canção que muitos só conhecerão pela paródia de Herman José). Ou poderíamos apontar baterias mais a sul, para a Jugoslávia ainda sob o jugo de Tito, onde damos de caras com os eslovenos Laibach, nome forte da chamada música industrial, e com os Zabranjeno Pušenje, banda de rock bósnia que depois de se tornar extremamente popular no seu país partiu à conquista da Europa com um nome mais familiar: No Smoking Orchestra, os mesmos do cineasta Emir Kusturica.
São apenas dois exemplos de uma música que quebrou barreiras e abalou convenções e convicções, mais no caso dos países de regime comunista. A União Soviética, o maior expoente desta ideologia, não ficou alheada dos ventos punk – que, como é óbvio, sopraram com muito mais força no underground. Bafejados por essa nortada, os Grazhdanskaya Oborona iniciaram actividade em 1982, pela mão de Yegor Letov, que se tornou numa figura de proa do rock russo e que à altura contava apenas 18 anos. Anti-autoritários, os Grazhdanskaya chocaram várias vezes com as autoridades soviéticas, tendo Letov chegado mesmo a ser internado num hospício. Não que isso o tenha travado de alguma forma. Ao longo dos próximos anos, a banda rodaria entre a energia punk, o espectáculo noise rock, e até mesmo pelo reggae, pela folk e pelo psicadelismo. Tudo inspirado pela literatura, pela poesia e pela filosofia.
E é preciso ter isto em conta, antes de enveredarmos pela música de Yanka Dyagileva, poetisa punk que, tal como Letov, nasceu na longínqua Sibéria. Ambos se movimentavam no mesmo circuito, tendo Dyagileva chegado a tocar com os Grazhdanskaya, ao mesmo tempo que assinava alguns discos a solo, editados entre 1988 e 1989. Angedonia (no cirílico original: Ангедония) foi um dos seus últimos álbuns antes de morrer, de forma trágica, em 1991 – o seu corpo foi encontrado no rio Inya a 17 de Maio, dez dias após ter desaparecido. Há quem fale de suicídio, outros de um possível homicídio.
Não se sabe como morreu. Mas a sua música conta-nos como viveu, mente aberta pelo anarquismo numa nação que primava pelo respeito e pela burocracia: sofredora, ansiosamente livre, e profundamente revoltada. Da sua poesia restam apenas as suas canções – que, como é óbvio, são incompreensíveis caso não se conheça a língua russa. Mas, em Ангедония e não só, conseguimos pressentir o seu espírito. Não é preciso tradução para a intensidade.
Mais por necessidade que por engenho, Ангедония foi gravado em regime de baixa fidelidade, não soando a mais que uma qualquer experiência caseira. Uma excelente experiência, ainda assim. “По трамвайным рельсам” arranca com o ruído de um motor antes de se ouvir um riff demoníaco, não muito dissimilar daquilo que o black metal norueguês faria escassos anos mais tarde. O baixo pulsa, a voz brota da raiva, e o tradutor ajuda à descoberta do poema: Se tivermos sorte, não teremos de voltar às nossas jaulas, canta na segunda estrofe, fuga aos Gulags hipotética em dois minutos e meio de energia punk.
Em “От большого ума”, somos confrontados pelo tremor da sua voz e pelo embalo ruidoso das guitarras, num dos momentos mais pungentes de Ангедония: O amor universal só te trará uma cara ensanguentada… Dyagileva é uma Patti Smith niilista, a isso obrigada pelo terror do regime em que vivia, mas isso não lhe retirou o sentimento de fúria nascida da injustiça – em cada um destes temas está uma revolução por acontecer, uma revolução que terá de brotar ainda que o seu sucesso seja praticamente nulo.
Hoje em dia, muito provavelmente só encontraremos Ангедония – bem como a sua restante discografia – na Internet, onde um website de tributo a Dyagileva nos conta tudo o que precisamos de saber sobre a artista. Infelizmente, sem saber russo não chegaremos longe; mas alguns dos seus discos foram ali colocados em formato .mp3, pelo que poderemos espreitar, por alguns minutos que sejam, para além da cortina de ferro. Com alguma sorte, ouviremos os seis minutos de miséria existencial que Dyagileva canta em “Ангедония”, o tema-título, que se traduz como “anedonia” – a perda de capacidade de sentir prazer, produto de uma forte depressão. Tudo por cima de de uma electricidade arrepiante, que a parece querer destruir a cada acorde. Quase como um prenúncio da má sorte que teria num dia fatídico de Maio. A história rock não contará com ela. Mas os amantes, os poetas e os filhos de uma liberdade por vir devem segui-la atenciosamente. As mãos amigas não têm linguagem nem fronteiras que as separem.