Tudo tem um ponto final e no vigésimo dia de Agosto todos os acordes soaram a Dó no anfiteatro natural de Coura. Mas é nas vivências que se criam razões para voltar e festival é criação e usufruto da mesma. Segue-se então um relato, uma análise dessas vivências no que foi último dia do Vodafone Paredes de Coura 2016.
Fomos recebidos, primeiramente, por rock insípido, isento de originalidade. Os Bracarenses Grandfather’s House deixam-nos numa inércia desconcertante e irónica: tamanha era a pujança do som mas tão pouca a emoção provocada por este. Pouco depois, os The Last Internationale invadem o palco principal com intenções pouco claras. “Este flyer mata fachistas!”, lia-se atrás da banda. Tudo certo até aqui, fachistas são seres realmente pouco apreciáveis merecedores de tal destino. O trio, que conta com a presença do baterista Brad Wilk, dos Rage Against The Machine, parece, contudo, não ter absorvido grandes lições com o projecto anterior do mesmo, especialmente em como ser uma banda política. Armados de chavões genéricos sobre insurgência popular e liberdade, parecem seguir, ao invés da irreverência polémica e firmeza política dos Rage, as manobras panfletárias e populistas dos Rise Against, outra banda de ‘Revolução Para Totós’. Os pais do baixista Edgey Pires nasceram em Portugal, como tal tivemos direito a esta pequena pérola: “Olá Portugal! Esta próxima canção é sobre REVOLUTION!” O trio, liderado pela poderosíssima voz de Delila Paz, não compensa as suas fragilidades ideológicas com ideias musicais. É, infelizmente, difícil de escolher o lado mais redundante da banda. Pilhando o hard rock mais genérico dos anos 80, o trio captou pouca atenção e foram poucos aqueles que se levantaram ou mostraram interesse na senda dos The Last Internationale por uma revolução inconsequente sem conteúdo. Pelo menos, da última vez que visitaram terras lusas, cantaram a Grândola. Hoje, pouco ou nada reside na memória dos presentes relevante ao concerto do trio americano no Vodafone Paredes de Coura.
Seria com os toques de Midas da dupla portuguesa Filho da Mãe e Ricardo Martins que o festival voltaria a bom rumo. As 6 cordas electrificadas de Rui Carvalho (Filho da Mãe), redemoinhando por loops e efeitos vários, tanto labirintava por aglomerados pegadiços de arpejos como se agigantava, envolvente, em parcos acordes incomuns e colossais. De construções atípicas e formatos amorfos – mas com propósito e diversidade – edificadas estas composições, Ricardo Martins provou que dos melhores bateristas há muito mais a ser dito do que serem exímios marcadores de tempo. O seu estilo, incrivelmente expressivo, a sua imprevisibilidade e teor creativo tão elevado que, em várias peças, cabia a Carvalho fazer da guitarra instrumento rítmico enquanto Martins floreava a composição. O som da dupla era extremamente envolvente, um vício de som hipnótico e inebriante, narcotizante na persecução e renovação contínua e vibrante de um par de ideias. Optando estes dois por criar texturas a paredes de ruído ou som, o que se via, ouvindo, eram paisagens vastas, ricas, envolvidas por neblinas místicas. Mirabolar constante, dimensões paralelas à distância de uma malha. Soberbos.
Seguir-se-ia, no palco principal, Capitão Fausto ou Os Problemas de Dar Concertos Todo Chapado. Nada contra os moços divertirem-se da maneira que melhor entenderem nos anteriores dias do festival antes de subirem ao palco. Mas exigia-se mais deles. Apresentando o novo registo Capitão Fausto têm Os Dias Contados, ficamos a pensar do título, caso atitude de palco esta se mantenha, uma infeliz sentença a cumprir-se. Hirtos e pouco móveis, desafino ali e desacorde acolá, continuaram sempre competentes o concerto, transições soberbas e malhas extendidas para compensar o seu estado. Todavia o novo registo discográfico – mais pop, formatado, delicado e bem comportado do que Pesar o Sol – parece carecer do poderio desbragado, convidando ao passo de dança, dos álbuns anteriores. Sendo o concerto mais focado neste, desculpa-se alguma perda de sangue na guelra e genica (não totalmente: se os Vaccines são capazes de dar um belo concerto tocando exclusivamente o seu reportório…). Todavia, para quem já os viu noutros contextos, é sabido que não foi, de longe, a melhor performance da banda portuguesa de pop rock psicadélico. Um travo agridoce permaneceu na multidão assistente.
Entre a monotomia Motoroma e os soporíferos Cigarretes After Sex, deu-se lugar no Palco Vodafone ao melhor concerto do dia, esse que devia ter fechado o festival, ao invés do festim pouco festivo, tresandando a azeite caducado, dos Portugal. The Man e CHVRCHES. Fala-se do cantautor The Tallest Man On Earth. Saltitante, felicíssimo e sem vergonhas, num perpétuo movimento, entrava o carismático Kristian Mattson em palco armado da sua guitarra eléctrica, com uma notória, evidente e enorme satisfação por ali se encontrar. Após dois temas apoiados pela graciosa banda de suporte, adjectivou o festival como tão incrível que trazia, para a ocasião, a guitarra mais silenciosa da sua Suécia natal, tentando tentar tocar no processo algo “super silencioso, à experiência”. É do mais sepulcral dos silêncios aquele se gera à frente de Kristian, até o vento que acariciava as árvores momentaneamente parando para escutar a guitarra de Mattson, sempre acompanhada pela sua fortíssima e expressiva voz singular. O sucesso é retumbante e a ovação ainda maior. As suas canções são complexas sem serem cerebrais, emocionais sem serem melodramáticas, acessíveis sem serem populistas – um exemplar escritor de canções, um ainda melhor intérprete das mesmas. Os seus dedilhares maravilham os festivaleiros, a sua amicabilidade e constante vontade de ligação ainda mais. Numa rendição eléctrica, a solo, da magistral “Love is All”, Tallest Man senta-se na boca de palco, ainda tocando. Sorri, terminando assim a canção. O público é dele. A certa altura, a sua guitarra arremessa o apoio do microfone para o chão. Uma roadie recupera ajeita o mesmo, Kristian olha humorado para a m, boca totalmente aberta num misto de espanto e admiração e, com um olhar profundo de satisfação, persegue-a gingão para fora de palco, tal criança a jogar à apanhada. Habilíssimo na guitarra, nunca parou de tocar. Afirmando que, ao visitar em 2014 a costa de Portugal, tudo tinha mudado para ele, lança a sua banda numa enérgica rendição de “Sagres”. Pouco depois, deita-se, a sua guitarra e o pedal steel numa improvisação singela e singular. No final, no quase silêncio, lançou-se a mais dois números acústicos a solo. O festival era dele, Coura tinha no seu rio um choro e o público as lágrimas. Chamou-nos de gente doce, agradeceu profundamente pela atenção, emocionou-se e chorou ele também. Como não mostrar-nos à altura da ocasião, quando alguém nos brinda com tamanho concerto? A noite foi dele, o festival, para alguns, certamente também o foi. Para a posterioridade.
O que não fica certamente para a posterioridade são os concertos que se seguiram. Para evitar repetições e a consequente caída em redundância, reportar-se-á os concertos de Portugal. The Man. e CHVRCHES em simultâneo. Estas duas bandas, de gesto bruto e grosso, lamentáveis escolhas para fechar um festival tão especial, pecam exactamente pelas mesmas razões. Estas desconhecem os seguintes termos: “contenção”; “nuance”; “restrição”; “pausa”; “suavidade”; “tacto”; “alteração”. Seguem uma fórmula durante o concerto inteiro: os Portugal. The Man têm crescendos/explosões/solos previsíveis em todas as suas faixas; os CHVRCHES uma ponte discreta e melancólica após o segundo refrão, seguida de uma explosão. Se tudo estiver sempre no máximo, se não houver espaço aos detalhes ou variações, tudo é monolítico, impenetrável e profundamente repetitivo. Lixo completamente descartável, irritantemente populista, sem o mínimo de creatividade. Só à estalada.
E é nesta nota pouco feliz que acaba mais uma edição do Vodafone Paredes de Coura. Contudo, sai-se daqui com saldo mais do que positivo, uma torrente de concertos excepcionais versus algumas decepções.
Pequena nota: Festivaleiros, não bebam água que está apontada por sinalética vária como não potável. Cento e tal idas ao hospital completamente evitáveis.
E é isto.
*Fotos, gentilmente cedidas por Hugo Lima, em actualização