Depois do abalo sentido esta semana em Lisboa, os At The Drive-In levaram até Paredes de Coura uma réplica que suplantou o original: o terramoto texano foi o destaque do segundo dia de festival, mas Car Seat Headrest, Ho99o9 e Jambinai também merecem elogios.
O segundo dia do festival prometia uma enchente de respeito, envergando no seu cartaz nomes tão apelativos às massas como King Krule, At The Drive-In ou Nick Murphy (Chet Faker). Cumpriu a promessa, preenchendo todos os recantos do recinto courense com grupos de todos os tipos e da mais variada preferência musical, numa noite que tanto ofereceu a pop macia de Nick Murphy no palco principal como o hip-hop duro cruzado com sonoridades hardcore (sim!) de Ho99o9 no palco secundário. A noite, que começou ainda durante a tarde quente, com Sunflower Beam a abrir o dia no palco secundário, revelou-se longa e agitada, com filas e engarrafamentos humanos, mas sempre compensadora pela quantidade e diversidade de concertos que prometeu e ofereceu.
O arranque no palco principal deu-se em português, com os cada vez mais presentes You Can’t Win, Charlie Brown. Não surpreenderam, e nada de errado há nisso: são uma banda coesa, bem ligada, dona de boas canções e, de forma humilde, bastaram dois temas para Afonso Cabral, o vocalista principal, lembrar-se dos momentos em que esteve em Paredes de Coura como festivaleiro. Agora em palco, o músico demonstrou-se honrado e o público foi-se compondo para celebrar um bom grupo português.
Pouco passava das 19:40, hora marcada para o encontro de Coura com Will Toledo e os seus Car Seat Headrest, e as primeiras filas iam-se enchendo cada vez mais: todos adolescentes, alguns muito novos, com o telemóvel em modo câmara trancado na mão, na esperança de capturar através da lente uma visão do seu ídolo que ultrapassasse a enfermidade deste pequeno contacto. Quando a banda chega ao palco, irrompem em saltos e urros, palmas e gritos, mal podem em si. Toledo é ele também pouco mais do que um adolescente; do alto dos seus vinte e quatro anos, conseguiu subir a um estatuto de respeito entre os seus colegas do rock, depois de quase uma década a lançar projetos sozinho no Bandcamp. Agora, como dizem os americanos, está no topo do mundo. Centenas de miúdos saídos do secundário esticam-lhe as mãos em adoração de messias, entoando até à rouquidão hinos como “Drunk Drivers/Killer Whales” ou “Vincent”, ambos temas retirados do aclamado álbum de 2016, Teens of Denial. No entanto, Toledo permanece de cara trancada face a estas manifestações de adoração, aliás, como sempre: um bigodinho ralo que lhe cresce na cara parece servir para lhe conferir o ar de adulto que nunca terá, parecendo sempre um adolescente grande e desastrado de óculos de armações grossas e com as calças apertadas acima da cintura. Mas não significa que não se sinta profundamente agradecido pelos fãs, que, aliás, são responsáveis pela sua migração da obscuridade da Internet para palcos principais um pouco por toda a parte: ainda há menos de uma semana, confessou que o concerto que deu no NOS Primavera Sound, em 2016, foi dos melhores da sua carreira, pela forma carinhosa com que foram recebidos. Porém, se o concerto no Porto demonstrou que a banda americana sabia carregar consigo um palco secundário, o de ontem pouco serviu para convencer alguém que não soubesse os discos de cor que conseguiam aguentar com um principal, num concerto morno que nunca chegou a dar tudo por tudo, como saíram da grade os fãs incondicionais a acreditar.

Apesar da corrente humana que se ia fazendo sentir pelas 20h30 de quem pretendia fixar-se num lugar confortável para assistir a um dos maiores nomes da noite (King Krule, 21:20), Timber Timbre ainda tinham à sua frente uma plateia de respeito. A banda, que se juntou em 2006 para vir lançando, ao longo dos anos, seis álbuns (dois deles ainda sem editora), reuniu-se no palco secundário para um concerto que embalou a audiência num voo planado pela sua discografia. A banda de freak folk pode ter começado para menos, mas, à medida que os seus riffs espaciais e ritmos pulsantes iam atravessando a tenda foi chegando uma pequena multidão, enchendo até ao fundo o pequeno palco, que vibrou com a voz profunda de Taylor Kirk e com temas como “Sincerely”, “Future Pollution”, “Hot Dreams” ou “Black Water”. Um concerto que, quem viu, certamente irá guardar num sítio especial.
Chegámos às 22:20. King Krule regressava para um encore, mas uma porção ainda significativa dos festivaleiros presentes já tinha ideia feita sobre o que estava na hora de fazer: abandonando Krule à mercê da multidão no palco principal, corriam para o palco secundário para assistir ao concerto dos americanos Ho99o9. O grupo de hip-hop/hardcore natural da Nova Jérsia, que começou a atrair verdadeiros devotos de culto aos seus concertos caóticos no melhor sentido da palavra, não desiludiu os fãs portugueses, com um concerto que deixou a audiência sem chão, chão este que parecia cair debaixo dos pés daqueles, mais corajosos, que se atreviam a chegar às primeiras filas para moches sem fim, berros, urros, uma explosão de luta e amor. O horrorcore que se fez ouvir naquele pequeno palco quase que ensurdecia e possuía de forma quase demoníaca o público que não conseguiu ficar quieto face à energia furiosa contagiante de theOMG, que corria o palco de uma ponta a outra com a força de um furacão, e Eadaddy, que parecia fazer desfazer a bateria por baixo de si. Um concerto para recordar, certamente, como um dos mais imersivos e intensos de todo o festival.

Depois, regresso ao palco principal para dois concertos muito esperados e muito diferentes: At The Drive-In e Nick Murphy. Primeiro, os texanos deram em pouco mais de uma hora uma lição de rock rápido e pujança. Eram um nome muito esperado e, sem surpresas, dedicaram grande parte do concerto ao novo disco in•ter a•li•a, mas, igualmente sem espantar, foi com os clássicos do emblemático Relationship of Command que se fez a festa maior: logo ao arranque, com “Arc Arsenal”, deu para perceber que Portugal, que nunca tinha visto os At The Drive-In, estava pronto para acompanhar o frenético Cedric Bixler-Zavala em saltos e cavalgadas. À energia do grupo juntam-se, pormenor importante, canções que já atravessaram pelo menos duas gerações: os At The Drive-In deram um grande concerto e estão em boa forma. Importa não voltarem a parar.

Nick Murphy era Chet Faker mas depois lembrou-se de mudar de nome. Musicalmente, não há particulares diferenças entre repertório passado e recente, e ao vivo tudo se junta num combo equilibrado. Se a coerência é elogiável, o registo demasiado semelhante e sem grandes reviengas merece alguma distância: à frente havia devotos e devotas, nada aqui ofende, mas sente-se a falta de algum rasgo, de uma criatividade maior, uma outra luz. “Talk is Cheap”, lá para o final, continua a ser o momento maior de uma carreira ainda curta, com potencial, mas algo indefinida nesta fase. Há tempo para afinar.
Foram os sul-coreanos Jambinai os encarregues da difícil tarefa de prender aqueles que continuavam com água na boca depois do concerto de Nick Murphy no palco principal. Mas se o frio que já se fazia sentir no recinto e o final das atuações no palco principal já chamava os festivaleiros para o campismo, o pós-rock experimental da banda que ia ocupando o palco secundário prendia-lhes os pés ao chão. Boquiabertos, surpresos, confusos, incrédulos. É o melhor leque de adjetivos para descrever as expressões daqueles que se reuniam em frente ao palco menor, agora habitado por um leque de instrumentos pouco vistos por estas terras, de sopro, de cordas, de nem sequer sabemos. Numa terra inundada pelo k-pop de pastilha elástica, os Jambinai distinguem-se pelo seu travo particular de sobriedade negra, menos convencional mas não por isso menos bela, que sobe e desce em explosões de bateria e guitarra para momentos mais serenos, que contam com a inclusão de instrumentos tradicionais tais como o haegeum, o piri e o geomungo, como uma maré em revolta. Apesar daqueles que se iam aborrecendo aos poucos de verem uma banda que requer mais um ou outro neurónio do que um Nick Murphy abandonarem os seus escrúpulos e iniciarem conversas de café que impediam aqueles interessados de ouvir a banda natural de Seul, o espetáculo foi avassalador e merecedor de muito mais do que um palco secundário – apesar de ser preciso consciência que talvez não corresse tão bem, dado a confusão estampada na cara de tantos membros do público. Será um caso de algo que se perdeu na tradução? – Não sabemos. Lee Il-Woo chegava-se ao microfone de vez a vez, agradecendo num inglês aceitável e numa voz baixa, quase assustada. Talvez a Coreia ainda esteja muito longe do português, mas Jambinai deram o primeiro passo para uma aproximação, pelo menos a nível musical, e a oportunidade de melhor os conhecer ao vivo foi certamente um primeiro passo importante.

Jambinai abandonavam o palco principal pouco antes das três da manhã, e os instrumentos tradicionais coreanos deram lugar à mesa de som responsável por fazer bombar pelo recinto inteiro a eletrónica de Marvin & Guy. Os baixos que encharcavam os temas do duo italiano fizeram-se sentir a ressoar no peito até muito para além das quatro da manhã, mas, por esta hora, estava na hora de arrumar as coisas e seguir para as casas ou tendas. Hoje há mais – mais precisamente, serão nomes como o nosso Bruno Pernadas, os escoceses Young Fathers, os canadianos BadBadNotGood e os americanos Beach House que juntarão todas as cores de todas as bandeiras num dia que, tal como os anteriores, pretende celebrar a música boa que é feita um pouco por todo o mundo.
Texto: Beatriz Negreiros e Pedro Primo Figueiredo || Fotografia: Francisco Fidalgo