Não é todos os dias que se celebram 25 anos de idade, por isso, nesta primeira noite de uma edição já esgotada, cantaram-se os parabéns ao Festival Paredes de Coura. Houve Mão Morta, Kate Tempest e os muito esperados Future Islands. Coura é amor.
O primeiro dia do festival, que começou morninho com os muito courenses Escola do Rock e os britânicos The Wedding Present, acabou por ir aquecendo à medida que a noite caía, com concertos dos americanos Future Islands, dos britânicos Beak> e, no que acabou por se transformar, invariavelmente, na atuação que com mais luz brilhará em recordação, Kate Tempest, que deixou o recinto em verdadeiras labaredas.
Nem todos os campistas, talvez mais preocupados com encontrar a sombra perfeita para estender a toalha junto ao Rio Taboão, podem ter visto a Escola do Rock de Paredes de Coura, mas, para os mais pontuais, que chegaram às 19:30 ou antes, revelou-se um showcase de talento português a quem foi dada a honra de abrir um dos mais conceituados festivais de Portugal. No qual, aliás, já são repetentes.
Não é o caso dos The Wedding Present, estreantes no festival luso à exceção de um pequeno concerto dado no mesmo dia junto ao rio, embora veteranos no mundo da música alternativa que estas quatro noites pretendem celebrar. A 16 de agosto de 1987, lançam George Best, conjunto de canções de rock simples e direto de riffs limpinhos e batida pulsante; trinta anos mais tarde, exatamente no mesmo dia, pisavam o palco principal do Festival Paredes de Coura, a tocar para um aglomerado de gente que ia chegando de comida no estômago e casaco na mão, preparado para o frio que já se ia fazendo sentir às 20h40. A banda, conduzida por David Gedge, na guitarra e na voz (é ele o único membro da formação original), entregou a Coura todo o seu rock direto e sem pretensões, que, por vezes, chegava a lembrar uns Smiths, por um lado, mais simplórios, por outro, menos pedantes. George Best foi atravessado de lés-a-lés, sendo ouvidos temas como “A Million Miles” ou “Give My Love To Kevin”. No final, ainda deu tempo para uma exceção à regra dos aniversariantes: “Kennedy”, single de 1989 e um dos seus maiores sucessos, foi o mote para a despedida de The Wedding Picture, e deu-se como todo o restante concerto: rock bem-disposto sem grandes complicações, mas, por ventura, sem grande encanto.
A ideia dos Mão Morta era, em Coura, apresentar o emblemático álbum Mutantes S.21, mas a hora de concerto de Adolfo Luxúria Canibal e amigos deu muito mais à simpática moldura humana que acompanhou o grupo na transição entre tarde e noite no “Couraíso”: cantaram-se os parabéns ao festival (“São 25 anos do mais antigo festival português com edições regulares”, lembrou Adolfo), recuperaram-se temas como “Bófia” ou “Velocidade Escaldante” e o vocalista dos icónicos bracarenses trocou as grades, onde é costume encontrá-lo em vários concertos, pelo seu lugar de sempre à frente de uma das mais emblemáticas bandas portuguesas.
Todos os elogios são poucos para os Mão Morta, e poucos cenários há onde o rock duro e intempestivo assente melhor ao grupo que Paredes de Coura. Houve projeções vídeo, eletricidade suja e estonteante, e um coletivo que não pegou em repertório recente mas que, podendo, o deveria fazer também, por exemplo, no dia de hoje – e ao terceiro dia de Coura poderiam voltar a tocar para apresentar outro qualquer álbum em exclusivo. Poderíamos ver os Mão Morta todos os dias que não nos importávamos, e de poucas bandas poderíamos dizer isto até porque poucas bandas válidas há, no panorama nacional, que possam mudar de repertório regularmente mantendo sempre os níveis de qualidade no máximo.

Já era noite cerrada quando Beak>, trio britânico que já provocava algum entusiasmo em alguns festivaleiros por trabalhos paralelos de Geoff Barrow (membro dos Portishead), subiu ao palco Vodafone. No grande palco, os três músicos colocavam-se quase num círculo de bateria, guitarra ou sintetizador e baixo, para o qual convidaram a já bem composta audiência para um espetáculo minimal, mecânico e certeiro, passando por temas como “The Gaol”, “The Broken Window” ou “Batery Point”. A sobriedade do krautrock de Barrow e companhia era apenas interrompida por conversas divertidas com o público; desde o chamamento de nomes a Trump (que já se tem vindo a tornar uma espécie de desporto olímpico para músicos em palco), a citações musicais que levaram a audiência tanto ao rubro como à gargalhada, com “Money”, dos Pink Floyd (“we’re not good enough to play that”) ou “Sultans of Swing”, dos Dire Straits (“we’re never playing that for anyone ever again”, gracejou Barrow com a sua natural graça britânica. “Fuck you!”). A certa altura, fitando o mar de gente plantado na colina verde à sua frente, o baterista afirmou que nunca tinham tocado para uma multidão tão grande (comentário tão frequente neste festival e tão agradável ao ouvido) e que a mãe dele ficaria feliz. Nós também ficámos, Geoff.

Os Future Islands são Sam T. Herring e Sam T. Herring é os Future Islands. O grupo norte-americano já anda nisto há valentes anos, mas só nos últimos registos deu o salto para o relativo estrelato. Ao vivo, usam e abusam do carisma e presença do vocalista para disfarçar alguma menor inspiração aqui e ali – há temas bons, mas tudo soa demasiado parecido entre si, por vezes mais eficaz, noutros momentos menos empolgante. Nos momentos lentos, curiosamente, podemos escutar uma banda diferente, mais luminosa, mas é com temas como “Seasons (Waiting on You)” ou “Ran” que o público, naturalmente, faz a festa. Sam T. Herring tem uma voz particular, pouco consensual, mas é um vocalista carismático e francamente superior à banda que lidera. Nada que importasse em demasia os milhares que fizeram a festa no dia de arranque, ainda sem todos os palcos ativos, da edição deste ano de Paredes de Coura.

1:55. Já há uns vinte minutos que os energéticos Future Islands se tinham despedido do palco de Coura. As bancas de comida enchiam-se dos mais gulosos, que procuravam tripas e batatas fritas. Outros sentavam-se na relva a conversar, longe da confusão da multidão. Outros, saciado o seu desejo de música ao vivo, regressavam às tendas, abandonando o recinto. Mas quem acertou foi quem ficou pela frente do palco principal, muitos não adivinhando que Kate Tempest, artista acabada de chegar, seria não apenas o concerto da noite mas sim um dos melhores concertos que já passaram por aquele palco nos últimos anos. A melhor parte é que ninguém sabia.
Kate Tempest tem pouco mais de trinta anos mas parece ser quinze, pelo seu tamanho franzino e carinha rosada, por outro lado parece carregar aos ombros o peso de sabedoria de uma anciã. Chega-nos do Sul de Londres diretamente para a frente do palco Vodafone do Festival Paredes de Coura, onde entra em palco acompanhada de uma banda de três (sintetizadores e bateria). Começa por nos convidar para uma viagem pelo seu mais recente trabalho discográfico, Let Them Eat Chaos, de 2016 (nomeado para um Mercury Prize). A audiência morde o isco, vamos experimentar, à aventura. O que se seguiu foi uma hora que esmagou todos contra o chão: as batidas e as teclas hipnotizantes, que se cortam e cruzam no caminho das canções, serviam de maré para erguer até aos céus a mestria de Kate Tempest, que tem dentro de si todas as palavras do mundo à mão e com elas brincando com a maior das facilidades, vociferando rimas tempestuosas que contam uma história aterradora sobre solidão, guerra, pobreza, noite, Londres. Kate Tempest, numa brevíssima interrupção num concerto que não deu ao público tempo para respirar entre gritos e palmas que irrompiam para celebrar furiosamente a genialidade da pequena poetisa britânica, fita de longe a audiência que se alastra pela colina acima e sorri um raro sorriso, microfone preso numa mão e a outra sobre o peito. E toda a gente pensa, ao mesmo tempo: foi por isto que viemos. E vamos. E continuamos a vir ao Festival Paredes de Coura. Festival que, provavelmente, não conhecia um momento de maior surpresa e choque por parte da audiência desde a atuação de Charles Bradley, em 2015.

Com um primeiro dia destes e com um final de noite destes, é fácil adivinhar que o aí se avizinha serão mais três dias de um parabéns cantado em conjunto a um festival que, 25 anos depois, continua a obrigar-nos a ficarmos surpreendidos.
Texto: Beatriz Negreiros e Pedro Primo Figueiredo || Fotografia: Francisco Fidalgo