O ano de 2014 aproxima-se vertiginosamente do fim. Nestes últimos doze meses fui ouvindo muita música (como é, aliás, habitual em mim), mas no entanto tenho de chegar à conclusão de que não foi assim tanta a música feita no Brasil que me ficou no ouvido. Logo eu, que o tenho afinado e moldado há muito para esses sons do sul do hemisfério, feitos com sotaque semelhante ao nosso. Apesar de ter selado as pazes com Gilberto Gil (coisa bem documentada na reportagem ao concerto que o músico baiano deu recentemente no Centro Cultural de Belém), e mesmo tendo ficado bastante agradado com os discos de estreia dos Carne Doce e de Moreno Veloso (sobre os quais aqui também deixei nota entusiasmada), pouco mais me agradou daquilo que fui tendo a capacidade de ouvir este ano da minha querida MPB. No entanto, uma última e boa surpresa aconteceu. O génio de Irará voltou com disco novo (embora dois dos temas fossem já conhecidos, retirados do ep Tribunal do Feicebuqui), e a boa forma verificada no anterior Tropicália Lixo Lógico (independente / Natura Musical, 2012) mantém-se a mesma, felizmente. Tom Zé foi-se perdendo um pouco em malabarismos sonoros algo vazios de conteúdo em trabalhos como Estudando o Pagode (Trama, 2005), Danç-Eh-Sá (Tratore, 2006), e Estudando a Bossa (Biscoito Fino, 2008), reencontrando-se numa linguagem digna do seu brilhante passado no citado disco de 2012, e no final deste ano a sua nova proposta discográfica fez-me acreditar que o tropicalismo que tanto adoro e que tanto me edificou como ouvinte, ainda está vivo e cheio de energia criadora. O «Trotski do tropicalismo» (como chegou a ser chamado em virtude do esquecimento a que foi inesperadamente votado quando Caetano, Gil e Gal se tornaram reis e rainha da Tropicália por muitos e bons anos), voltou, e recomenda-se bastante. Vira Lata na Via Láctea é um imenso passeio ao passado, mas com os olhos postos no futuro da inventividade infinita sem tempo nem lugar. Tudo em Tom Zé é um caldeirão de ideias, filosofias, ritmos em perfeita desbunda, palavras que brincam seriamente nas camadas de significações que Tom Zé lhes atribui. Sempre assim foi, e assim sempre será, mesmo que a inspiração possa, por vezes, derrapar um pouco.
Vira Lata na Via Láctea conta com imensos nomes do cenário musical brasileiro, desde logo destacando-se as participações / parcerias instrumentais, vocais e autorais de Caetano Veloso (com Tom Zé encerra o álbum com a belíssima «Pequena Suburbana»), Milton Nascimento («Pour Elis», antiga canção de homenagem a Elis Regina), O Terno, Trupe Chá de Bolbo, Filarmônica da Pasárgada, Silva, Dinucci, Daniel Maia e Tatá Aeroplano. Uma autêntica interseção de talentos, tempos antigos e modernos, nomes históricos e outros que farão, seguramente, história na música brasileira. Mesmo assim, no meio de tantos e tão variados artistas, correntes e estéticas diferenciadas, Vira Lata na Via Láctea apresenta-se bem coeso, subordinado a temas como o esbatimento das ideologias de direita e de esquerda perante o poder do dinheiro, a religião e os seus legados (Tom Zé pede perdão ao atual Sumo Pontífice na brilhante faixa «Papa Perdoa Tom Zé»), a ética, Geração Y e os seus iPads, iPods e outros ais (de aflição, de dor, de gozo, de espanto, de desgosto ou de tudo um pouco?) dos moderníssimos tempos da nossa existência. O olhar crítico de Tom Zé mantém-se implacável e feroz. A sua arte torta de fazer canções está novíssima em folha, aos 78 anos de idade. (a minha respeitosa vénia curva-se perante a imensidão da obra inqualificável do artista, muito solenemente).
De uma certa maneira (no jeito das canções, na ironia fina das letras, nas linhas melódicas de alguns dos temas do disco) Vira Lata na Via Láctea faz-me recordar os imprescindíveis Todos os Olhos (Continental, 1973), Estudando o Samba (Continental, 1976) ou Correio da Estação do Brás (Continental, 1978), o que é, convenhamos, um excelente sinal de vitalidade e de força criativa. Que venha outro, e outro ainda depois desse. A lira gauche de Tom Zé tem há muito a eternidade garantida, mas dele queremos sempre mais e mais e mais e mais…