Estima-se que cerca de 100 mil hippies tenham rumado a Haight-Ashbury no Verão de 1967. O nascimento e ocaso do sonho de uma geração.
Foi há cinquenta anos atrás mas parece, ainda hoje, coisa do futuro: amor livre, flores no cabelo, LSD puro como a nascente de um rio. O epicentro aconteceu no bairro de Haight-Ashbury em San Francisco, no Verão de 1967, mas o sismo do amor estremeceu também em outros lugares: na East Village em Nova-Iorque, na Sunset Strip em Los Angeles e na Swinging London dos Beatles e dos Floyd. Com a mediatização destes eventos, a mensagem espalhou-se depressa pelo mundo, e até nós, na pasmaceira do salazarismo, tivemos os psicadélicos Quarteto 1111.
Nada nasce do nada e a primeira semente do Summer of Love surgiu talvez em 1944 quando William Burroughs, Jack Kerouac e Allen Ginsberg se conheceram no campus da Columbia University em Nova-Iorque. Depressa, esta trupe de intelectuais loucos começa o movimento Beat, uma declaração de guerra contra a respeitabilidade pequeno-burguesa, o tédio uniformizado dos subúrbios e o vazio espiritual da sociedade de consumo. A viagem “pela estrada fora”, a experimentação de drogas, o amor livre, o fascínio pelas religiões orientais, são tudo características que os hippies irão mais tarde açambarcar aos velhos beatnicks. Um hippie é um beatnick que não gosta de usar sabonete.
Se a beat generation nasce em Nova Iorque, dissemina-se nos anos 50 pela Costa Oeste, montando o seu quartel-general em San Francisco. Nas lúgubres coffee shops do bairro de North Beach, nos seus fumarentos clubes de jazz, e na mítica livraria alternativa City Lights, os beatnicks jogam em casa.

No anos 60, uma nova geração de boémios aparece: os primeiros hippies. Se a matriz ideológica é semelhante, há, contudo, importantes diferenças entre as duas gerações. Os beatnicks usam o cabelo curto, amam o frenético bebop, são contemplativos e individualistas, intelectuais, apesar de anti-académicos, e querem sobretudo que o aborrecido mundo os deixe em paz. Já os hippies gostam de roupas excêntricas e coloridas, usam os cabelos compridos como bandeiras, amam o rock, têm um espírito comunitário e o anseio profundo de mudar o mundo.
Esta nova geração de rebeldes troca a North Beach por Haight-Ashbury, um bairro popular no centro de San Francisco, com bonitas casas vitorianas ao preço da chuva. Estamos em 1965, a guerra do Vietname acabara de estalar, e o LSD torna-se pela primeira vez uma droga de rua.
Dois gurus foram decisivos na disseminação do LSD: o psicólogo Timothy Leary (que havia sido expulso da universidade de Harvard em 1963 por incentivar os seus alunos a dar nos ácidos); e o romancista Ken Kesey (o autor do clássico “Voando Sobre um Ninho de Cucos”, que, no Verão de 1964, percorrera a América num autocarro psicadélico, espalhando a boa nova alucinogénica).

A trupe de Ken Kesey (os Merry Pranksters) já andava há uns tempos a promover acid tests pela baía de San Francisco, festas loucas organizadas à volta do consumo de LSD. Nestes eventos, Kesey juntara pela primeira vez os dois ingredientes mágicos do flower power: o LSD e o rock’n’roll. O primeiro concerto dos Grateful Dead, em Dezembro de 1965, acontece num desses acid tests; e o primeiro festival de acid rock, apropriadamente chamado de Trips Festival, surge um mês depois, juntando os Grateful Dead aos Big Brother and the Holding Company (ainda sem a sublime Joplin).
Se as longas improvisações de ambas as bandas são, com certeza, amplificadas pelas tripes de LSD, o seu frenético blues rock é ainda bastante convencional. Com efeito, é fora de San Francisco que nascem os primeiros exemplos de rock psicadélico propriamente dito, onde o som emula sem ambiguidades a alteração dos estados de consciência induzida pelo LSD.
Aproveitamos o pretexto para uma breve incursão pelas origens do acid rock.

São, talvez, os 13th Floor Elevators, oriundos do conservador estado do Texas, os primeiros a gravar um tema psicadélico: o single “You’re Gonna Miss Me”, publicado em Janeiro de 1966. As hipnóticas notas sopradas por Tommy Hall no seu “garrafão” não deixam grandes margens para dúvidas.
Em Fevereiro, os ingleses Yardbirds oferecem-nos a primeira guitarra psicadélica. Falamos do single “Shapes of Things”, cujo solo tripado de Jeff Beck, cheio de feedback e orientalismos, está pejadinho de ácido lisérgico.
Em Março, os Byrds sobem a parada com a imortal “Eight Miles High”, primeiro tema psicadélico da cabeça aos pés. Não é só num pormenor aqui, ou num instrumento acolá, que a transe alucinogénica assoma; ela atravessa todo o corpo da canção. O solo violentamente alucinado de Roger McGuinn é arrepiante. A letra, também explícita nas suas referências psicadélicas, provoca a sua censura na rádio, razão pela qual o single nunca foi a lado nenhum.

Teriam que ser os mágicos Beatles a democratizar o rock psicadélico. Eles já tinham dado um ar da sua graça em Dezembro de 1965 com a cítara de “Norwegian Wood”, que, não sendo necessariamente psicadélica, acabou por ser a matriz de todo o acid pop de travo oriental. Mas só em Maio de ’66 é que psicadelizam totalmente a questão com o tema “Paperback Writer”, single muito influente, por ter chegado a número um em ambos os lados do Atlântico. O lado B “Rain” é o primeiro tema pop a utilizar gravações de trás para a frente, engenhoso artifício que, pela sua estranheza, simula na perfeição as alterações perceptivas induzidas pelo LSD.
Mas “Paperback Writer” fora apenas o aperitivo. O prato principal viria em Agosto com o álbum Revolver. Se já tantas fronteiras estéticas tinham sido quebradas, a faixa “Tomorrow Never Knows” é a derradeira machadada na pop sóbria e bem comportada da primeira metade dos sessenta. Os seus estranhos loops electrónicos, o seu bizarro solo de guitarra gravado de trás para a frente, a sua tripada bateria, tudo nos desintegra a mente em mil pedaços. Ainda hoje o tema é de uma espantosa modernidade.
E se fizemos todo este desvio pelos temas pioneiros do rock psicadélico foi para agora concluirmos: San Francisco pode ter sido a capital do flower power, mas o seu acid rock chegou tarde às gravações. Nos primeiros tempos da cena de Haight-Ashbury, a música que saía dos seus gira-discos era de Londres e de Los Angeles: Beatles, Byrds, Donovan, Love…

Os Jefferson Airplane são a primeira banda de acid rock de San Francisco a gravar, lançando o seu álbum de estreia em Agosto de 1966; mas o grupo, ainda sem Grace Slick, tem ainda muito pouco de psicadelismo. Só ao segundo álbum, em Fevereiro de ’67, é que o rock de San Francisco verdadeiramente alucinado chega ao vinil. A hipnotizante “White Rabbit”, com as suas incursões no universo pré-psicadélico de Lewis Carroll, é uma das pérolas do summer of love.
Dois meses depois, é a vez dos Country Joe and the Fish se estrearem em 45 rotações, dando ao mundo, porventura, o álbum psicadélico mais inventivo da cena de San Francisco. O tema “Section 43” é uma das viagens mais alucinadas do rock de ’67. Na sua modorra letárgica, é a própria consciência do tempo que é distorcida e desacelerada. Uma obra-prima.
Na sua inventividade psicadélica, os Jefferson Airplane e os Country Joe and the Fish são a excepção que confirma a regra. O demais acid rock de San Francisco de ’67 – Grateful Dead, Big Brother and the Holding Company, Moby Grape – é blues e soul rock vibrante, por vezes brilhante (Janis é sempre brilhante), mas muito tímido na exploração de novas sonoridades psicadélicas.

Finalizado este brevíssimo resumo sobre os aspectos mais musicais do acid rock, retomemos, sem mais delongas, o nosso fio narrativo principal.
As notícias correm depressa. Em Junho de ’66, 15 mil hippies rumam para San Francisco, a meca do LSD e do flower power. A comunidade sente agora a necessidade de um jornal próprio, que exprima os seus ideais e anseios. Allen Cohen e Michael Bowen respondem à chamada, criando o jornal underground “San Francisco Oracle”. O nome do jornal denuncia a sua filosofia mística, muito influenciada por Timothy Leary. À semelhança do “papa do LSD”, o Oracle encara os ácidos como um sacramento religioso, traduzindo a experiência psicadélica na linguagem mística das religiões orientais.
O mainstream é que não acha graça nenhuma a todo este “deboche”. Em Outubro de ’66, o LSD é ilegalizado na Califórnia. Promovidos, de um dia para o outro, à condição de criminosos, não mais cessarão os conflitos entre a comunidade de Haight-Ashbury e a polícia de San Francisco.

A malta do Oracle organiza de imediato o protesto “Love Pageant Rally” (“O Cortejo do Amor”) e cerca de um milhar de hippies comparece no Golden Gate Park. Todos engolem um ácido em uníssono, celebrando a beleza e unidade de todos os seres vivos. Os Grateful Dead e os Big Brother and the Holding Company (já com a divina Janis Joplin) tocam sem pedir cachet. Essa sempre foi uma característica da cena de acid rock de San Francisco: um enorme sentido de pertença à comunidade, que se traduzia nestes gestos de generosidade.
Um outro colectivo forma-se por esta altura- os Diggers -, com uma filosofia bem distinta do San Francisco Oracle. Trata-se de um grupo de radicais anarquistas, com pouca paciência para as tretas pseudo-religiosas de Leary e companhia. Trocando o misticismo pelo activismo, os Diggers defendem uma sociedade liberta do efeito corruptor do dinheiro. De imediato, criam em Haight-Ashbury uma série de serviços gratuitos (refeições, lojas, centros de saúde), que não só acodem às necessidades imediatas da comunidade, como mostram ao mundo que é possível uma outra ordem social, baseada na dádiva e na cooperação.
Os Diggers intervêm também de outra forma, provocando as pessoas com o seu teatro de rua. Em Dezembro de ’66, envergando enormes máscaras de animais, o colectivo encena a morte do dinheiro, carregando um caixão cheio de notas, e entoando a marcha fúnebre de Chopin com as seguintes palavras: “Get Out My Life, Why Don’t You Babe?”. O sentido de humor dos Diggers sempre foi muito particular…

Num certo sentido, o clímax do Verão do Amor aconteceu… no Inverno. Falamos do Human Be-In, o primeiro encontro hippie de massas, que, em 14 Janeiro de 67, congrega cerca de vinte mil hippies no Golden Gate Park. Organizado por Michael Bowen (do San Francisco Oracle), o evento oferece concertos de acid rock (bandas gigantes como os Jefferson Airplane, os Quicksilver Messenger Service, os Grateful Dead, e os Big Brother and the Holding Company da mágica Janis tocam novamente sem pedir um tostão); testemunhos dos principais gurus do psicadelismo (Timothy Leary profere a célebre invectiva: “turn on, tune in, drop out”); e, last but not the least, a distribuição gratuita, e à discrição, do LSD mais puro alguma vez sintetizado no planeta.
O evento foi perfeito: pacífico, mágico, criativo. Mas foi também o princípio do fim. Tendo tido uma enorme cobertura mediática, e com uma publicidade tão favorável, milhares de bons freaks de todos os cantos dos Estados Unidos decidem assentar praça em San Francisco. Ora, se há coisa que aprendemos com a experiência de Haight-Ashbury é que o éden na terra só funciona numa escala pequena. A diferença entre o paraíso e o inferno está apenas na dose.
À medida que sucessivas enxurradas de novos hippies se amontoam no pequeno bairro florido, mais o paraíso na terra se vai desvanecendo. Os líderes comunitários apercebem-se de imediato do problema mas já é tarde de mais. O San Francisco Oracle bem apela nos seus editoriais para se estancar a migração hippie para San Francisco, implorando aos amigos freaks para criarem novas comunidades livres pela América fora; mas depois da engrenagem entrar em funcionamento, é impossível parar o seu movimento.

Tudo se irá complicar quando chegar o Verão, devido ao início das férias escolares. Por isso, na Primavera de ’67, a comunidade de Haight-Ashbury joga na antecipação, congregando os seus vários colectivos num objectivo comum: amortecer o impacto negativo do afluxo massivo de gente que virá no Verão. A essa plataforma dá-se o nome de The Council For the Summer of Love, concelho que reúne os Diggers, o San Francisco Oracle, e outras associações. Desse esforço conjunto, nasce toda uma infra-estrutura de respostas de alojamento, saúde, higiene e alimentação. Em vão. Quando chegou o Verão, o bairro de Haight-Ashbury rebentou à mesma pelas costuras.
Para ajudar à festa, Scott McKenzie tem a brilhante ideia de gravar o single “San Francisco (Be Sure to Wear Flowers in Your hair)”, como se não houvesse já hippies suficientes em Haight-Ashbury. O single sai para as lojas em Março de ’67, tornando-se num dos grandes hinos do flower power.
Chegado o Verão, não se fala de outra coisa no raio da comunicação social. O London Times faz manchete com o título: “Flower Children Invade San Francisco”; segue-se a revista Time, com o título “The Hippies: Philosophy of a Subculture”; e, depois, a CBS News com a reportagem “The Hippie Temptation”…

Como se não bastasse, decorre também em Junho o Monterey. O festival é mítico (foi lá que Hendrix sacrificou no fogo a sua guitarra…), mas, no que respeita à sustentabilidade de Haight-Ashbury, só agrava o problema, trazendo mais uns quantos milhares de hippies para a baía de San Francisco.
É oficial: o Verão do Amor é, agora, pesadelo. Senão, vejamos.
Autocarros com turistas rumam ao bairro, abocanhando o seu bocado de histeria nacional. Os hippies são observados, catalogados e fotografados, como se fossem animais num jardim zoológico.

Dealers sem escrúpulos encontram também no bairro uma janela de oportunidade para fazer dinheiro fácil, manipulando a escassez de erva para encher o mercado de speeds, coca e heroína, drogas que nem sempre rimam bem com paz e amor.
Como cereja em cima do bolo, centenas de putos de famílias disfuncionais fogem de casa também rumo a Haight-Ashbury. São miúdos e miúdas de pouco mais de treze anos, frágeis e desamparados, que rapidamente se tornam presas fáceis na selvajaria crescente em que o bairro se transforma.
Sobrepopulação, doenças venéreas, infiltrações policiais, bad trips, overdoses, violações, ajustes de contas entre dealers, rusgas: o antigo éden é agora o mais dantesco dos infernos. Os hippies originais começam a fugir em debandada para comunas no meio do campo. Acabado o Verão, o grosso da miudagem regressa a casa, para recomeçar mais um ano escolar. O comércio de artefactos psicadélicos, antes florescente, deixa atrás de si um triste lastro: uma fileira de lojas vazias com tábuas pregadas nas portas. Junkies e mendigos amontoam-se nos passeios, como se habitassem uma qualquer canção esquecida dos Mão Morta.

Podemos datar com precisão o fim do Verão do Amor. Aconteceu a 6 de Outubro de ’67, pela obra e graça dos Diggers, que providenciam a cerimónia fúnebre do recentemente falecido hippie, “filho adorado dos mass media“, paz à sua alma. Um caixão com o defunto é transportado pela rua. San Francisco pode regressar outra vez à sua entediante normalidade.
Poderíamos ter acabado o texto assim, abruptamente, deixando um travo amargo na boca do leitor. Nunca o faríamos. Se há coisa bonita no flower power é a sua inocência, pelo que uma conclusão cínica seria a mais baixa das traições. Haight-Ashbury foi uma festa bonita de paz e amor, sim… até os media estragarem tudo.
E é também, ou queremos que o seja, uma bonita história de redenção. Haight-Ashbury imolou-se no fogo para que a mensagem se espalhasse pelo resto do mundo. É verdade que hoje, cinquenta anos volvidos, o mundo continua a ser uma bola bem filha da puta. Mas é também, apesar de tudo, um mundo mais tolerante à diferença, mais amigo da natureza e da liberdade individual. Devemos esse gigante legado aos tripados com flores no cabelo que ousaram acreditar num mundo melhor.
Só é pena é os ácidos serem hoje uma merda…