“May we not forget/Liberté, Egalité, Fraternité/For there’s life in the old world yet!
There’ll always be an England/And Ireland and a France/A Liechtenstein and a Finland/And we have only one chance”
E no final destes versos de “A Drinking Song”, Neil Hannon parou, e com o seu olhar num misto de sarcasmo e lamento disse “Vê-se que escrevi esta música antes do Brexit”.
Começo pelo encore mas, onde começa e acaba um concerto de The Divine Comedy? A História anda para trás e para a frente na música do grupo Irlandês que esgotou, na noite de Sábado, o Teatro Tivoli, em Lisboa. E já dizia Dante na sua Divina Comédia “No inferno os lugares mais quentes são reservados àqueles que escolheram a neutralidade em tempo de crise.”
Trajado de Napoleão, Neil Hannon, um dos grandes imperadores da pop britânica sobe ao palco com o único desejo expansionista de proporcionar a maior noite de festa.
Longe dos álbuns desde 2010, Neil Hannon voltou a compor para The Divine Comedy e lançou em 2016 Foreverland que o trouxe de volta a terras lusas. O primeiro longa duração em seis anos, chegou, para delírio dos fãs, com o mesmo tom jocoso que esconde a delicadeza da dor através da metáfora sarcástica, e embrulhado na melhor pop a que nos habituou. Prodigioso nas melodias orelhudas com arranjos orquestrais, The Divine Comedy explora o novo trabalho apresentando temas contagiantes como “Napoleon Complex”, “How Can You Leave Me On My Own”, ou a balada encantadora “To The Rescue” inspirada no trabalho que a sua companheira, a cantautora Irlandesa Cathy Davey, faz para a protecção de animais, e onde a elogia e admira profundamente numa intimidade directa, sem recurso a personagens, que oferece à música um coração aberto que poucas vezes ouvimos em Hannon, conhecido pelo seu absoluto domínio da lírica do translado de sentimentos.
“The Pact” também aparece como o processo diplomático de um casal que tenta gerir a relação e formar pactos como os países formam alianças e proteger-se de inimigos e tempos difíceis. Mais uma metáfora que nos devolve o solo onde Hannon se sente mais firme e menos vulnerável, aceitando que sejamos nós a entender a sua sensibilidade.
Com arranjos difíceis de reproduzir ao vivo sem uma orquestra, seria de esperar que uma guitarra, um baixo, uma bateria e dois teclados, não conseguissem devolver toda a grandiosidade da sonoridade dos irlandeses. Mas uma máquina coesa, efeitos de teclado, um acordeão e Hannon com uma melódica vermelha soprada ao microfone com um chapéu triangular napoleónico, arrebatam qualquer multidão.
Juntos numa sala multicultural onde a alegria saltitava como um duende verde entre portugueses, ingleses, irlandeses e quem mais se juntassem à festa, ouviram-se inúmeros temas do catálogo dos The Divine Comedy espalhados por diferentes décadas e tempos históricos, desde os temas mais queridos dos fãs dos anos 90, de Liberation a Fin de Siècle, passando por Casanova, onde as vozes se uniram para cantar “Something For The Weekend” ou “Songs Of Love”, esta última dedicada com emoção aos irlandeses presentes. Tudo teve o seu espaço no Tivoli, inclusive a última proposta antes do hiato, Bang Goes The Knighthood de 2010, foi um dos álbuns mais tocados com uma sala transformada em discoteca dos anos 90 com “At The Indie Disco”, ou “I Like”, tema que levou ao delírio o público que, aos pares, dançava pelas coxias como casais apaixonados no primeiro encontro e até crianças pulavam em camarotes, autenticando a absoluta transversalidade da influência dos Divine Comedy.
Fiel à teatralidade que o levou nestes últimos anos a perseguir diferentes caminhos dentro da música como um Musical ou Operetas, Hannon troca de roupa a meio da apresentação para encarnar o “A Complete Banker”, com o seu chapéu de coco, fato e gravata e o auxílio de um chapéu de chuva que nos remete imediatamente para a pintura de Magritte “O Filho do Homem” que explora através de outra forma de arte o que Hannon vem a explorar desde sempre com a sua música, o conflito entre o visível e o que queremos ver. Já anteriormente a banda tinha utilizado a famosa pintura do cachimbo do pintor belga para um artwork adaptado “Ça Ce N’est Pas La Divine Comédie”.
Despachado de tanta representação, Hannon entrega-se à ferocidade das músicas com o seu vinho tinto e distribuiu a felicidade liquida pelos colegas abrindo o globo que adorna o palco, onde se escondia um bar e de onde cerveja fresca saiu a rodos ao som de um interlúdio de cabaret que conferiu a descontração cómica habitual. Chamou ao palco Lisa O’Neill a quem confiou a abertura do espectáculo e em dueto interpretaram “Funny Peculiar”.
“Mutual Friend” levou-o aos braços do público, desceu à plateia, serenou uma fã, serpenteou por entre as cadeiras e deitou-se no chão para delírio dos presentes, num dos momentos mais eufóricos da noite.
Próximos do fim a temperatura escalava dentro da sala lisboeta, a compostura era deixada de lado, os braços levantavam-se para o céu, os punhos no ar, as vozes mais altas já sem vergonha cantavam as letras. O êxito “National Express” foi recebido em delírio e no final o hino “Tonight We Fly”, de Promenade, fechou o concerto numa ovação que nos elevou a todos.
A missão estava cumprida, The Divine Comedy ofereceu novamente todo o seu talento a um fiel público português que os acompanha desde início e que mostrou pretender fazê-lo para sempre.
Fotografia: Luís Flôres
SETLIST
- Sweden
- How Can You Leave Me On My Own
- The Frog Princess
- Count Grassi´s Passage over Piedmont
- Your Daddy’s Car
- Napoleon Complex
- The Pact
- To The Rescue
- The Certainty of Chance
- The Complete Banker
- Bang Goes The Knighthood
- Generation Sex
- Mutual Friend
- Funny Peculiar (Dueto com Lisa Neill)
- A Lady of a Certain Age
- Songs of Love
- Something For The Weekend
- Alfie
- At The Indie Disco
- I Like
- National Express
ENCORE
- Assume The Perpendicular
- A Drinking Song
- Tonight We Fly