Em “Pra Ninguém”, Caetano Veloso canta um último verso que diz apenas isto: “E melhor do que o silêncio só João”. A mais pura verdade condensou-se nesse claríssimo e definitivo instante poético. Agora, no entanto, penso nessa linha de texto imaginando outra que remete para a eternidade do silêncio de João. A vida acaba sempre por revelar a sua enorme ingratidão.
Soube com atraso de algumas horas do falecimento de João Gilberto. Depois de um dia entre bons amigos na costa alentejana, a notícia chegou-me por escrito. Uma mensagem do meu filho dava-me a triste informação. Imaginei-a a ser escrita, instantes antes, com algum receio, consciente da perturbação que me iria causar. Causou. Mas, mais do que isso, na noturna viagem de regresso a caminho de casa, dei por mim a recordar, na memória da “minha rolleyflex”, os inúmeros momentos de prazer que João Gilberto me deu ao longo da vida. A gratidão, mais do que qualquer outra coisa, será sempre um gesto de extremo carinho, e ser carinhoso com João é uma obrigação, sobretudo por não existir em mim a imposição cega que dela tantas vezes decorre.
João Gilberto foi o mais meticuloso artista que alguma vez conheci. Trouxe para a música a ciência cirúrgica da interpretação, humanizando-a com o canto tranquilo da sua voz e através da batida tão única do seu violão. A sua arte redefiniu todas as outras, colocando-as nos seus devidos lugares. E eu, depois de ter percebido verdadeiramente o que me havia chegado pelo ecrã do telemóvel (“Pai, o João Gilberto morreu.”), dei vida aos prazeres passados a ouvi-lo, prolongando-lhe um pouco mais a existência. Passei o resto da viagem na companhia de mais uma pessoa, sem que nenhuma das outras desse por isso. O convívio entre amigos nem sempre obriga ao espalhafato dos risos e das vozes altas, como bem sabemos. Foi o que aconteceu. E assim, meio desafinado por dentro, fui cantarolando em silêncio respeitoso os versos de muitas das canções que João me ensinou, guardando-o, a partir desse momento, para sempre em mim. Aos poucos, fui ficando mais tranquilo, reatando as pazes com o mundo.
E agora, João? Vais-me desculpar, mas é claro que não chega de saudade.
”Telemóvel”,muito bom,rs – João e sua musicalidade exata.