É bom ouvir o que de bom a estação do outono nos pode dar. Rainy Sunday Afternoon é o aconchego que falta, o agasalho perfeito para o o bem estar geral da alma.
Escrever sobre um disco dos The Divine Comedy é algo que se faz sempre com prazer. E esse sentimento, o prazer, como bem se sabe, pode ser mutante, instável, movediço. Ele altera-se (ou refina-se, em alguns casos) com a experiência e com a idade. No entanto, o projeto musical cujo nome se deve ao imortal Dante Alighieri, parece já ter nascido adulto, recusando juventudes mais pomposas e empoladas, tantas vezes sinónimas de alguma ingenuidade mal disfarçada. Neil Hannon, de alguma maneira, nunca teve a idade que foi tendo, se é que nos fazemos entender. Esteve sempre uns anos à frente nas suas aventuras musicais. À frente na reprodução lírica dos sentimentos, no conhecimento e na prática dos seus afinados sentidos musicais, verificáveis nas provas que nos foi dando ao longo dos anos. A sua discografia, é um facto, já vai longa, e há pouco deu-nos conta de mais um álbum, que de tão próximo do tempo em que saiu, parece perfeito para ser ouvido junto à lareira, com uma manta West Yorkshire Spinners por sobre as pernas, mitigando os frios que o outono se presta a trazer.
Rainy Sunday Afternoon é um disco de uma enorme maturidade, como não poderia deixar de ser. Muito pessoal e de uma exultante melancolia. Ouvi-lo é sentir a tristeza onírica, vaga e permanente que parece existir a cada canto das nossas vidas, quando nos predispomos a esse tão particular estado de inquietação. É sombrio nos frios e duros temas que aborda, como a perda, a dor (que mesmo podendo passar, nunca passará o ter doído), a inevitável passagem do tempo, a mortalidade. Depois, há o que costuma haver em todos os álbuns dos Divine Comedy, talvez neste ainda com mais aprofundado rigor. As letras são fina tapeçaria de palavras, as melodias acordes quase perfeitos de estados de almas e emoções profundas. “Il pleure dans mon coeur”, como dizia Paul Verlaine, quando ouvimos a vida cantada assim, desta forma tão apaixonadamente hannoniana.
Nunca Neil Hannon esteve tão próximo de Scott Walker ou de Brell como agora. Talvez não vos pareçam evidentes, num primeiro momento, estas referências. Talvez se sintam mais, depois de algum tempo de escuta, do que resultem inteligíveis. A arte tem destas coisas, como bem se sabe. E sabe bem, profundamente bem, ouvir “Achilles”, épica e sofrida, assim como “The Last Time I Saw the Old Man”, que trata o tema do alzheimer de forma tão comovente, quanto pessoal. Mas há muitos outros encantamentos, muitas outras faixas a ter em conta. Sem querermos subtrair-vos ao prazer da descoberta que é escutar Rainy Sunday Afternoon, deixamos, mesmo assim, outras pistas: “The Heart Is a Lonely Hunter” e “I Want You” são imbatíveis, tal como “Can’t Let Go” e a quase alegre “All the Pretty Lights”, natalícia nos brilhos das palavras e no que nelas se acende: pequenos corações que brilham na neve da estação festiva.
Voltemos, então, ao disco, já não particularizando canções, mas entendendo-o na sua generalidade. Rainy Sunday Afternoon é um autêntico tratado de elegância. O seu apurado sentido orquestral é inatacável, exemplo perfeito de requinte e de bom gosto. Mesmo algum do sentido barroco que o álbum encerra, tendendo, por vezes, a um certo exagero, fica-lhe bem, de tão delicado e de tão leve. Há, sem grande espanto, uma boa e insustentável leveza sonora que nos conduz do início ao fim do disco sem que sintamos o tempo passar. Nem mesmo algumas cambiantes rítmicas e melódicas perturbam a coesão de Rainy Sunday Afternoon.
Muito se tem dito e escrito sobre este disco, e nem sempre com os encómios que nos parecem justos. No entanto, se pensarmos nos anteriores Office Politics (2019) e Foreverland (2016), este regresso em 2025 é claramente um passo em frente. É melhor, só perdendo para o extraordinário Bang Goes The Knighthood (2010). E mesmo sabendo que o ano vai longo, era bom que não nos perdêssemos com os mais gritantes hypes do momento e déssemos o devido valor a quem nunca nos defraudou. As escolhas dos melhores discos do ano estão quase a acontecer. Não se esqueça disso. Não se esqueça de Rainy Sunday Afternoon, até porque os Divine Comedy nunca se esqueceram de nós.