
O terceiro e último dia do Super Bock Super Rock foi o melhor que podia ter sido. Trocando o velhinho dia do metal que fazia parte de todos os maiores festivais por um dia de hip-hop riquíssimo, o festival esgotou a lotação – principalmente pela vinda do nome maior do hip hop da actualidade (Kendrick Lamar) e os veteranos De La Soul.
Mas, antes dos colossos, fomos ouvir Slow J. Rapper e produtor nascido em Setúbal, colaborador de nomes maiores do hip hop nacional como Valete e NBC, Slow J foi recebido de braços titanicamente abertos no palco Antena 3, numa afluência enorme inédita aos concertos de abertura do palco nos dias antecedentes. Introduzido ao publico pelos teclados à UK garage do teclista Francis Dale, reminiscentes do embalo caloroso neo-soul de James Blake, Slow J “rappa” no backstage “O Objectivo”, irrompendo palco adentro parcos segundos depois, as suas introspectivas e ponderadas letras estudadas de fio a pavio pelo publico em êxtase. O contrabaixo “samplado” na seguinte “Tinta da Raiz” é de um bom gosto e classe exemplar, o flow de Slow J como seda delicada e cirurgicamente colocada entre cada luxuriante vibração. O refrão da contestatária “O Cliente” é repetido aos berros por todos os presentes e Slow J cativa, a sua concentração e entrega evidentes pelo sentimento com que entrega cada uma das suas barras. “100” eximiamente “sampla” “Canção de Embalar” de Zeca Afonso, o punho erguido em defesa da liberdade da auto-afirmação e individualidade: cérebro e inteligência sem sacrificar a diversão imediata. A balada “Cristalina” demonstra a aptidão de Slow J para dar o seu vibrato crooner à canção que verdadeiramente merece, uma gigantesca ovação e a sobreposição das vozes da audiência à do MC confirmam a imensidão da canção. A bamboleante e festiva “Cancun” traz um pé de dança, “Portus Calle” leva os fãs de velha guarda à histeria absoluta. No final, as vozes cantam em uníssono um lema: “Não quero uma boa vida, eu quero uma vida boa!” Não foi o Éder que os fodeu, fomos nós que nos fodemos. Agora é ser vencedor noutro campo: “diz-lhes que normal é ser quem são, diz-lhes, Portugal é muito mais que uma nação.” Essencial.
De Slow J seguíamos para as paragens de Kelela, palco EDP. Num som reminiscente da britânica FKA Twigs, o R&B físico, mutante e sapiente do mais abrasivo hip hop de Kelela fez do pouco público que dispunha uma arma, comunicando com o mesmo em múltiplas ocasiões, chamando-o a participar pelo meio de palmas ou simplesmente com um ouvido mais atento. Não se verificando um dos concertos mais marcantes do festival, a poderosíssima e imponente voz de Kelela deixou um travo agradável nos nossos ouvidos, sendo um caso a estudar e a repetir, talvez em sala fechada, com o desejo de ser acompanhada por mais do que um DJ ao seu lado.
Fidlar, logo a seguir e no mesmo palco (enquanto Mike El Nite mandava algumas dicas no palco Antena 3), foi a destruição bonita do mesmo, em jeito de começar a despedir do festival. “40oz. On Repeat” era o crowdsurf óbvio, o moche óbvio, o rejubilo óbvio do público. De mãos no ar, o refrão era entoado como uma serenata pela massa considerável que afluía ao palco secundário do Super Bock Super Rock. O final de tarde começava a ser começo de noite e toda a gente tinhas as letras no coração, palpitante palpitante, os pés e corpos no ar, saltitantes saltitantes. Sorrisos bilaterais, uma empatia invejável por muitas das bandas que passaram pelo Parque das Nações e um rock agressivo sem danos colaterais senão o desabafo de uma juventude que via nas letras e riffs dos Fidlar a salvação. Cabelos longos e vida pra esbanjar davam-nos os rapazes de Los Angeles. Ficámos até “West Coast”, hino bucólico e sorridente que quase nos fazia deitar uma lágrima do canto do olho, como Bonga.
O fluxo migratório do dia mais concorrido do Super Bock Super Rock rumava ao palco principal para ver os Orelha Negra. Qualquer um ficaria perplexo – e orgulhoso – com a afluência de gente no Pavilhão Atlântico, já que a arena do mesmo estava quase toda cheia – recorde-se que em Iggy Pop estava a pouco mais de metade. Estariam a marcar lugar para Kendrick Lamar? Nada disso, já que quando o concerto acabou a larga maioria abandonou a sala. O quinteto lisboeta começava o espectáculo tapado por um lençol branco, sombras misteriosas e avassaladoras projectadas no mesmo, que nem sombras chinesas, espíritos gigantes, prontos a deixar tudo de queixo no chão. O sample de Ben Harper – refrão de “I Want To Be Ready” – arrepiava as paredes do agora MEO Arena e arrepiava-nos também a mestria com que os músicos misturavam a música ao vivo e o uso e controlo em tempo real de samples, a perfeição do tempo dos dedos de Sam The Kid a esbugalhar-nos os olhos, tudo impressionantemente bem feito.
Cai o lençol e ouve-se o apelo ao barulho de Sam The Kid, sem microfone mas sim com um sample de si próprio, a voz como um deus que convocava os seus crentes ao culto. “Throwback”, um dos maiores êxitos da banda e integrante do seu segundo álbum, de 2012, provocava o maior abano de cabeças até aí e bolas de cristal surgiam em palco, tornando o pavilhão numa pista de dança do tamanho da vida. Mas ainda mais delírio estava pra vir com o sample de “Hotline Bling”, do canadiano Drake. “You used to call me on my cellphone” em uníssono, cantávamos todos sem excepcão. Se alguma coisa os Orelha Negra provaram neste concerto foi que sabem muito bem como fazer magia a acontecer, sem precisar de um vocalista por cima dos seus instrumentais a puxar o entusiasmo da plateia. O teclado impiedoso de Gomes Prodigy fazia-nos perder a cabeça e acabávamos por terminar o concerto com um orgulho avassalador pelos Orelha Negra e por terem nascido nesta terra à beira-mar plantada.
De La Soul subiriam a palco logo a seguir. O old school era revisitado num espectáculo que valeu pela presença e energia em palco dos dinossauros do hip hop. Ainda que a grande maioria da plateia não conhecesse as canções – à excepção da última, “Feel Good Inc.”, original dos Gorillaz – os veteranos puxaram pela plateia como até aí não tínhamos visto no festival inteiro. Uma festa inesquecível.
Mas a lenda da noite, Kendrick Lamar, obliterava todo o festival.
“Look both ways before you cross my mind.”
– George Clinton
Estaria esta frase no pano de fundo durante a totalidade do concerto. Exigimos demasiado de Kendrick, Kendrick exige demasiado de si. To Pimp A Butterfly é o conflito, é a escolha, é olhar em volta e dar-se numa sala de espelhos onde nenhum reflexo é igual. O que significa ser uma lenda ao terceiro álbum de estúdio (sem contarmos com as mixtapes de qualidade variada), o que significa ser porta-voz de tanto, de tantos: dos negros, do hip hop, de Compton, do estrato de baixo da América racial e dividida? “Levitate, levitate, levitate, levitate.” Kendrick não quer mais do que celebrar a vida e como a vida são milhares de sons, tem-los a todos na sua música: são desta matéria feitas as coisas sobre-humanas. Não só representante maior da cultura afro-americana, Kendrick é também o porta-voz da Geração Y e de tantos que não sabem o que fazem num mundo tão globalizado e caótico. E isso viu-se naquele que foi o concerto mais socialmente abrangente dos últimos – e próximos – tempos. Do estrato mais baixo ao mais alto, do tom de pele mais claro ao mais escuro, dos mais novos aos mais velhos, toda a gente que lotava completamente o pavilhão Atlântico saltava, gritava (Éder?) e esbracejava ao som de “Institutionalized”, “Backstreet Freestyle”, “M.A.A.D City”, “The Art of Peer Pressure”, “These Walls”, “Bitch, Don’t Kill My Vibe”, “Money Trees”, “King Kunta”, “i” e ainda esse hino de toda uma geração que é “Alright”. A banda, impecável no controlo do barco – e até mesmo do público, quando regressou ao palco para o encore -, serpenteava pelos clássicos do hip hop contemporâneo, elevava o rei do hip hop moderno a um estado divino, comprovado na extensa ovação que Lamar recebeu no final de “King Kunta”. Público e músicos completamente abalroados com aquilo que recebiam do outro lado, um concerto histórico em terras lusas. Não conseguimos ouvir mais nada. Obrigado Kendrick. Obrigado Super Bock Super Rock. Desta não recuperamos tão cedo.
Texto: Francisco Marujo e Guilherme Portugal
Fotos: Francisco Fidalgo e Francisco Pereira