Música sem regras, distorcida, disruptiva, livre, punk, barulhenta e uma voz desvairada, enlouquecida, endemoninhada, declamando poemas estranhos, duros, controversos, polémicos, politicamente incorrectos, não aconselhável a almas sensíveis.
Há já seis anos que não escrevia neste site. Talvez até essa altura (ou antes, provavelmente) fui bastante (será?, talvez não tanto) melómano, com uma constante ânsia de descobrir coisas novas. Com o tempo e os afazeres fui perdendo o hábito de ouvir música numa base diária, chegando a passar vários dias por semana sem ouvir nada (nunca imaginei que tal pudesse acontecer). Mas continuei a ir a concertos. No entanto fui deixando de ir a concertos em salas grandes, deixei de suportar a distância entre palco e público e o som de qualidade duvidável dos festivais de verão, fui-me tornando mais um espectador de concertos de salas pequenas como a ZDB (em Lisboa) ou festivais como o OUTFEST (no Barreiro). E fui assistindo cada vez mais a concertos de índole experimental (digamos assim), de improvisação, de free jazz, coisas mais instrumentais talvez também, enfim… não importa muito. No entanto, o rock continuou a soar nos meus cd’s antigos e sim, continuei a ir a concertos de Mão Morta onde quer que os apanhasse.
Mas onde estavam as novas bandas portuguesas de rock alternativo? Por muito que até gostasse de ver um concerto (e às vezes bastante) aqui e ali de Black Bombaim, SUNFLARE, dUAS sEMIcOLCHEAS iNVERTIDAS, 10000 Russos ou Putas Bêbedas, nada disso era música para ouvir em casa (o problema não é deles, é meu; ou, não és tu, sou eu). E tão-pouco oiço em casa muito outros músicos brilhantes mais do espectro da improvisação como o Norberto Lobo, o Gabriel Ferrandini, o Pedro Sousa, o David Maranha ou tantos outros, a cujos concertos assisti vezes sem conta e que até filmei no meu filme-concerto BARULHO, ECLIPSE.
Até que há uns anos a minha amiga Ana (poderia chamar-se Joana ou Patrícia) convidou-me para um concerto no Banco/Aposentadoria (que fechou este ano) dos SEREIAS. Disse-me que eu iria gostar, que era uma cena assim tipo Mão Morta, uns gajos do Porto, com músicos relativamente jovens e um vocalista relativamente cota, que era assim um poeta louco e tal. A sala no andar de baixo do bar onde aconteceu o concerto tinha as paredes de azulejo, o que tornava o som deplorável, reverberando tanto que tornava as letras imperceptíveis, nem mesmo aquando dos refrões (quais refrões?). Ainda assim, o espectáculo foi imenso, havia uma cumplicidade brilhante entre excelentes músicos que se percebia que improvisavam à volta dos gritos alucinados de um António Pedro Ribeiro em transe, tanto possuído como apático, por vezes fora de si, outras vezes fora daquele palco (inexistente).
Chegado a casa (ou provavelmente no dia seguinte) fui ouvir o álbum O PAÍS A ARDER no Bandcamp e caiu-me no goto. Instrumentalmente sofisticado, com laivos tanto de rock pesado, como de post-punk, no-wave, ou até de jazz fusão (Contradição quase me leva para os últimos álbuns de Miles Davis), onde a inspiração em Sonic Youth é tão inevitável como em Mão Morta (as letras e a forma livre, arranhada e pouco melódica de cantar de António Pedro Ribeiro ajuda a essa comparação). Música sem regras, sem refrões (tinha razão lá em cima), distorcida, disruptiva, punk, barulhenta, mas às vezes até dançável. E uma voz desvairada, enlouquecida, endemoninhada, declamando poemas não propriamente eloquentes, mas sim estranhos, duros, controversos, polémicos, politicamente incorrectos, não aconselhável a almas sensíveis (va de retro tu que és da cancel culture), esquartilhando políticos, jornalistas, apresentadores de TV, denunciando o consumismo glutão, o capitalismo e as políticas neoliberais deste país que subjugam uma sociedade amorfa, pacificada por telenovelas de segunda a sexta, futebol aos sábados e idas ao shopping ao domingo (ou será que já estou fora de moda e deveria dizer Instagrã de segunda a domingo?). A mesmo tempo, letras vomitadas do fundo de um poço frio, vindas de um lugar de dor, desespero, solidão, esquizofrenia e depressão.
Quero o primeiro-ministro pra comer ao pequeno-almoço
Quero um trabalho pra mandar pó caralho
Quero um défice para meter no cu
Eu não quero ser competitivo
Eu não quer ser um executivo
Eu não quero ser um gajo normal
Eu não quero morrer de tédio
De tédio, de tédio, de tédio…
Voltando ao primeiro parágrafo deste meu texto… E porque será que em casa oiço mais SEREIAS que qualquer outra dessas bandas/músicos que enunciei em cima? Acho que a resposta é óbvia (mas só a descobri enquanto escrevia este texto) e é a mesma que me diz que não ouviria tanto Mão Morta (apesar dos instrumentais belíssimos, extraordinários) sem a voz e as letras do Adolfo Luxúria Canibal. A música mexe com o nosso corpo, mas é a literatura que nos leva para outros mundos.
SEREIAS é uma banda que já não existe. António Pedro Ribeiro não existe. As pessoas já não lêem livros. Eu já nem leio poesia. Músicos-poetas como o Adolfo, o José Mário Branco, o Sérgio Godinho ou o Jorge Palma já não existem. Só os encontramos no hip-hop, valha-nos o hip-hop – mas não é muito a minha praia.
Ah, e lembrei-me de escrever sobre os SEREIAS por visto que eles vão tocar ao Outfest, no Barreiro. E por ter acabado de ouvir o segundo álbum da banda, recentemente lançado pela Lovers & Lollypops. E sobre ele escreverei amanhã ou quando me apetecer e se me pagarem até o escrevo hoje.