Volvidos 22 anos, Samuel Mira abriu a porta do “quarto mágico” e, com arranjos de cordas, sopros, bateria, baixo e teclas, deu pela primeira vez vida ao Beats Vol. 1: Amor no palco do Centro Cultural de Belém.
Na intimidade do quarto, em Chelas, Samuel Mira cozinhava. Não empilhava pratos de loiça, mas sim discos. Ouvia canções, cortava trechos, apenas os bocadinhos orelhudos, e metia-os na panela (um Akai MPC 2000, leia-se), misturando-os com um beat de agitar pescoços. Naquele mundo mágico, só dele, vivem filhos da soul Motown, “Come to My Garden” de Minnie Riperton e “Something to Believe In” de Curtis Mayfield, e gangster de Long Island, como “Buhloone Mindstate” de De La Soul, confidentes encapsulados em CD-Rom. Por algum motivo aquele quarto acabaria por ganhar o epiteto de “mágico”. Apesar desta amalgama de novos amigos, de tantas diferentes origens, todos conviviam naquele MPC. E Samuel, então com vinte e poucos anos, tinha uma visão concreta para os juntar: contar a história de amor dos pais. O resultado foi «Beats Vol. 1: Amor», editado em 2002, mas que nunca vira a luz do dia – até hoje. Volvidos 22 anos, Samuel, artisticamente conhecido por Sam The Kid, abriu a porta do seu quarto e, com arranjos de cordas, sopros, bateria e teclas, deu vida ao disco no palco do Centro Cultural de Belém.
O concerto estava esgotado há meses, quase um ano. Em Lisboa, foram marcadas duas datas: dia 31 de outubro e 1 de novembro. Fomos ao segundo dia. À porta do CCB, a 20 minutos da hora marcada, fumavam-se os últimos cigarros antes de entrar, sentindo-se o frenesim de quem conseguira bilhete, de quem o guardou durante tanto tempo. Falava-se sobre o concerto na noite anterior e formavam-se longas filas para comprar merch, em especial a edição vinil do disco, que só está a ser vendida nestes concertos. O disco atingiu o estatuto de culto e aquele era uma sessão solene esperada. Afinal, o silêncio é tão importante quanto o barulho – e esse é outro dos talentos de Samuel Mira: gerir o ruído. Um disco lançado em 2002, que só é tocado e lançado em vinil em 2025. Naquela noite em Belém, sentia-se uma tesão acumulada de vinte e três anos.
O pontapé de saída foi dado pelo pai, Napelão Mira. Afinal, a história é sobre si. Coloca a girar num leitor de vinil “Live at the Sahara Tahoe” de Isaac Hayes. E de repente, uma televisão de tubo passa o vídeo clipe dos Commodores, cuja canção “Just to Be Close to You” faz de sample principal para a primeira música do disco (e do concerto): Beleza. “Girllllllllllllll”, canta Lionel Ritchie acompanhado pelo som dos pratos, tarola e bombo, beats no centro da canção, entre contratempos e síncopes, tocados agressivamente por Fred, que reproduz o ritmo outrora pensados pelos dedos de Samuel Mira nos pads do Akai.
No alinhamento, Sam não inventou. O concerto seguiu a ordem do disco, do lado A ao D, da 1.ª à 17.ª, uma retrospetiva de um amor profundo de cerca de uma hora e cinco minutos. Desde a fase da aproximação, como “O Keu Kero”, “Vem” e “A Manhã Seguinte”, guiado pelo baixo pesado de Quincy Jones “Tell Me a Bedtime Story”, até à consolidação, à “Fundação”, cujas bases fazem homenagem a “The Warnings (Part II)” de David Axelrod, entre os momentos de desavenças, que acabam em “Recaída”, reminiscencia da sensualidade de qualquer make-up sex ao som de “Brazilian Memories” de Grover Washington Jr, a base do sample, cujo saxofone ganha outra vida com a existência de uma secção de sopros. Essa é a grande virtude deste live-act: grandes temas tocados por instrumentos reais. No fim, o ponto alto (e que arrancou mais aplausos): a rendição organica de “Quando a Saudade Aperta”, com linhas de cordas épicas a tornar aquele momento arrepiante.
Foi uma grande noite, que será repetida no Porto, na Casa da Música, sessão marcada para o fim do mês. A última faixa do disco dá spoiler: “O Amor Não Tem Fim”. E de facto, isto é coisa feita com amor, por amor.
Fotografias: Teresa Louro























